10.05.17

Pessoas sentenciadas à privação de liberdade também se veem como privadas de direitos humanos


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Por Ellen Tavares

Evidenciada diariamente por meio das condições sub-humanas em que os presos são mantidos no Brasil, a violação sistemática dos direitos dessas populações se dá com a superlotação carcerária, pelo não acesso à assistência jurídica e em função da falta de estrutura física adequada nas penitenciárias, entre outros fatores. Contudo, o senso comum reforça a ideia de que respeitar os direitos humanos dos presos implica em lhes conferir benefícios, privilégios, e não garantias previstas para qualquer cidadão. Ao tentar saber o que as pessoas sentenciadas à privação de liberdade pensam acerca da questão, a mestra em Direitos Humanos Angélica Alves da Silva constatou que, na opinião dos próprios reeducandos, "o respeito a esses princípios constitucionais não se constitui privilégios e deve atender a todos, incluindo os presos que, assim como qualquer pessoa, merecem outras oportunidades mediante um erro cometido."

Com a dissertação "Direitos Humanos para bandidos: Representações sociais dos direitos humanos por reeducandos do Sistema Penitenciário do Estado de Pernambuco", defendida, em agosto de 2016, no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPE, Angélica se propôs a dar atenção ao que ela entende por "naturalizado" e "invisível". O trabalho, orientado pela professora Celma Fernanda Tavares de Almeida, verificou a representação social dos direitos humanos por pessoas liberadas em regime aberto e em livramento condicional do Sistema Penitenciário do Estado de Pernambuco. “Esquece que ali são humanos” e “a gente é tratado como bicho”, foram alguns exemplos de respostas dos entrevistados, evidenciando o processo de tentativa de destituir a humanidade deles. 

Nas sondagens feitas com 15 reeducandos com idade acima de 18 anos, seis entrevistados afirmaram que seus direitos não foram garantidos durante o período de reclusão e quatro deles acreditam que seus direitos foram garantidos. Entre as violações que mais ocorriam nas unidades penitenciárias, os entrevistados identificaram diversas situações de desrespeito desde superlotação, alimentação de péssima qualidade, tratamento desumano, maus-tratos até morosidade no julgamento dos processos. Ainda foi relatado o fato de que quem tem mais dinheiro tem mais direitos na cadeia. "Acessar a opinião desses reeducandos mostrou-se um conteúdo importante atualmente para compreender os pensamentos e juízos de valor que sustentam a representação social dos direitos humanos", analisa Angélica.

“Foi possível pressupor que uma parte significativa desses sujeitos não compreende os direitos humanos como universais, seja pelo viés de se sentirem excluídos socialmente, seja pela vivência durante o período de reclusão”, aponta Angélica. Para os entrevistados, os direitos mais mencionados como os que deveriam ser assegurados aos presos são alimentação e oportunidade de trabalhar. Ainda de acordo com as entrevistas, as informações sobre direitos humanos chegaram aos reeducandos pela via do “eu ouvi falar” dentro do próprio sistema penitenciário.

Em relação à afirmativa de que direitos humanos são privilégios de bandidos, nenhum dos entrevistados concordou com a frase. “O pessoal que tá na rua não sabe o que é tá na prisão. Não é privilégio de bandido. A sociedade pensa assim porque esquece que ali são humanos”, disse um dos entrevistados identificado como M.M.S. De acordo com Angélica, a expressão "direitos humanos é privilégio de bandidos" colabora efetiva e fortemente para o enfraquecimento da atuação das organizações e pessoas que atuam na defesa, proteção e promoção desses direitos.

PESQUISAS | Segundo a autora da dissertação, o sistema penitenciário brasileiro, longe de ressocializar os presos, vem mostrando-se, há décadas, como um cenário potencializador e palco de graves violações dos direitos humanos. E, mesmo esta realidade sendo divulgada frequentemente nos veículos de comunicação e presente na lista de denúncias, relatórios e reivindicações realizadas por defensores e organizações internacionais e nacionais, pesquisas recentes mostram que boa parte da sociedade brasileira permanece apresentando uma percepção dos direitos humanos pautada em uma lógica de que são “privilégio de bandidos”.

Pesquisa de opinião pública realizada em 2015 pelo Instituto Datafolha, com alguns dados citados na dissertação, revelou que 50% dos entrevistados concordam com a frase “bandido bom é bandido morto”. E, isso, para Angélica, é um indicativo de que, para um número expressivo de brasileiros, as pessoas que cometeram algum crime, estejam ou não reclusas em unidades prisionais, não merecem sequer acessar o direito fundamental à vida.

"Entender os direitos dos presos como privilégio acaba por levar muitos cidadãos a corroborar com as práticas violentas presentes nas instituições de segurança pública feitas por ações arbitrárias de agentes do Estado e, assim, a sociedade não apenas reproduz, mas também incentiva a manutenção da violência contra os presos", aponta.

REALIDADE | Segundo dados reproduzidos na dissertação, a superlotação no sistema penitenciário em Pernambuco ultrapassou, em 2014, mais de 31 mil presos e, na análise da pesquisadora, este fator impulsiona uma série de problemas graves que infringem direitos fundamentais. Os números mostram a inviabilidade de manter esse quantitativo de presos em condições mínimas de saúde, salubridade e segurança e, muito menos, de ressocialização.

Aos que confundem respeitos aos direitos com impunidade, Angélica afasta a ideia de que a população encarcerada está isenta de culpabilidade. Longe do romantismo de considerar que os apenados não devem pagar pelo crime que cometeram, a dissertação buscou direcionar como a representação dos direitos humanos pela sociedade exerce na perpetuação de um sistema falido. “Se eles fossem tão privilegiados pelos direitos humanos como o ideário impregnado na sociedade, certamente as respostas apresentadas por eles nos apontariam para um caminho oposto ao mostrado”, resume a autora da dissertação.

E, como caminho para mitigar essa distorção, a autora sugere investimento na desconstrução da noção dos direitos humanos na perspectiva de privilégio, sobretudo no que concerne às pessoas em privação de liberdade. “Os meios de comunicação, por exemplo, poderiam cumprir papel importante no que diz respeito às denúncias da não observação dos direitos humanos por parte do Estado e na disseminação desses direitos como direito de todas as pessoas, independentemente do nicho social a que pertençam”, defende. 

“A dissertação foi uma tentativa, quase um apelo, de que alguns segmentos da sociedade enxerguem ao menos em alguma medida que a vivência no cárcere, nas unidades brasileiras, não condiz com uma situação de privilégio”, afirma Angélica. E acrescenta: “Quando os próprios sujeitos que vivenciaram as violações de direitos humanos nas unidades prisionais podem falar, opinar e se posicionar sobre a representação social de tais direitos, a concepção dos direitos humanos e a do privilégio são completamente vistas por outra perspectiva”.

Mais informações

Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPE
(81) 2126.8766 | 8301
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Angélica Alves da Silva
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