Por mais visibilidade e resistência na arte

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24/09/2017

 

O conhecimento científico forjou uma realidade que não acolheu todos os grupos e suas diferenças sociais, culturais, étnicas, de gênero, raça, religião... Reconhecidos entre seus pares, uma identidade unificada acabou por prevalecer, no mundo ocidental, o da cultura dominante dos colonizadores e conquistadores, que a empurraram goela abaixo aos povos dominados à custa de genocídio e do extermínio de uma minoria discriminada e relegada a guetos, tratadas como invisíveis e inaudíveis.

O preconceito salta aos olhos. Só não vê quem não quer. Como explicar, por exemplo, os poucos representantes das minorias exibindo seus trabalhos nas galerias, catálogos de arte, museus e outros "espaços legitimados"?

"Das novelas às artes visuais, da performance ao balé, há uma tentativa de enclausurar nossas expressões em papéis definidos. Os que saem desse perfil entram no ponto cego. Mesmo que estejam fazendo trabalhos brilhantes, há uma recusa de escuta que os colocam no limbo.

Não é uma questão de 'se sentir excluído', mas de reconhecer que existem exclusões", declara a artista visual pernambucana e negra, Ana Lira. A dificuldade de se incluir já começa pela desvantagem econômica.

"Façamos os cálculos para um artista, hoje, fazer residências artísticas, pagar montagem e circulação de exposições, e, vejamos quantos artistas negras e negros têm condições de arcar com esses custos", alerta Ana, que acrescenta a temática abordada pelos artistas negros e negras como outro motivo de exclusão.

"Nossa cultura recusa essas percepções acerca das coisas. E esses filtros não são ingênuos", pondera. Forçar a manutenção de um padrão é também invisibilizar. "A diferença, talvez, é que diversos grupos de artistas compreenderam que há caminhos para tentar dissolver alguns destes mecanismos e, há décadas, trabalham tanto nesta dissolução quanto na construção de novos espaços. É nisso que eu acredito".

A obra reflete o pensamento. "Quando abordo o que me impede de fluir na vida, estou tratando de exclusões. Tenho projetos que tocam diretamente nisso, como o '111 Cale-se', que está em exibição agora, na mostra 'Agora Somos Todxs Negrxs', no VídeoBrasil, em São Paulo, que é um verso de lamento à morte de Joselita de Souza, mãe de um dos cinco jovens fuzilados com 111 tiros no Rio de Janeiro, quando passeavam de carro para celebrar o primeiro salário de um deles. Ela faleceu de depressão seis meses depois da morte do filho".

A professora de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Liana Lewis, que atua na formação de professores para o ensino médio, racismo, gênero, infância, identidade e migração, declara que, por conta da miscigenação física e cultural, no Brasil seria teoricamente impossível definir com clareza quem é branco e negro.

"No entanto, no cotidiano, as instituições e indivíduos demarcam claramente estas fronteiras raciais e lançam mão do Mito da Democracia Racial para não se colocar no lugar de opressor e para proteger os privilégios da raça branca", diz a socióloga.

Para ela, homens e mulheres negras ora são invisibilizados, ora hipervisibilizados. "A invisibilidade se dá através do não reconhecimento de seu protagonismo como sujeito no cotidiano e nos espaços de poder.
O negro e a negra nunca são vistos como alguém que pode carregar um valor moral e serem reconhecidos ocupando lugares de prestígio. Esse constitui um processo claro de desumanização.

Outro processo de desumanização se dá através da hipervisibilidade, especialmente do fetiche, onde ambos são vistos como objetos sexuais, novamente destituídos do lugar de sujeito e, em relação aos homens, como potencialmente violentos, agressores. O genocídio da juventude negra através da morte violenta é um exemplo patente desta questão", pontua a estudiosa.

Por mais reconhecimento

Índia da etnia Xucuru, de Pesqueira, no Agreste pernambucano, Dona Zenilda, 67 anos, reclama mais visibilidade para seu povo e enxerga a representação da cultura como uma forma de resistência.
Mas lembra que já foi muito pior no passado. Viúva do Cacique Chicão Xucuru, assassinado em 1998, ela recorda que, antes do marido tomar a liderança de seu povo e lutar contra os posseiros que cercavam suas terras, não era possível expressar a própria cultura.

"Não podíamos nem dançar nossos rituais, nem falar nossa língua, o tupi", recorda Dona Zenilda, que é uma líder da comunidade e também confecciona arte indígena. Por causa disso, com o tempo, muito do vocabulário acabou se perdendo. "Falamos apenas cerca de 600 palavras", lamenta Dona Zenilda. Mesmo que não sejam muitas, elas estão presentes nos livros didáticos das crianças xucurus.

Índio da etnia Macuxi, o artista Jaider Esbell, de Roraima, encara como um empenho pessoal furar a invisibilidade. Jaider recebeu o prêmio Pipa 2016 Online, uma parceria entre o Instituto Pipa e o MAM-Rio. Não é tão importante quanto o Pipa principal, um dos mais importantes das artes visuais do País.

Mas Jaider encara seu alcance nas redes sociais como uma alternativa às grandes galerias e museus do mercado convencional. "É uma forma eficiente de se comunicar com o mundo", ressalta. Infelizmente, seu trabalho é mais reconhecido fora do País.

"Atualmente, estou percorrendo o Brasil todo com a exposição 'It was Amazon / Era uma vez Amazônia - arte com prioridade', que une arte e ativismo", afirma Esbell, que declara que suas obras possuem um arcabouço de arte indígena contemporânea.

Em alguns desenhos, formas humanas se confundem com as da natureza de maneira sutil, em preto e branco. Outras vezes percebe-se uma influência dos traços da arte rupestre.
Mestre Galdino

No Agreste, a cultura local tem passado por um processo de achatamento. "Se existe uma comunidade que se reconhece ela é invisibilizada em nome da maioria dominante, cunhada como algo menor, primitivo, naif", reflete Tarcísio Almeida, que faz parte do Núcleo de Estudos da Subjetividade, da Pontífica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Ele foi convidado pelo artista Carlos Mélo, natural de Riacho das Almas, no Agreste, para participar da segunda edição da Bienal do Barro, prevista para acontecer na primeira quinzena de outubro.

O evento trata justamente de um elemento que ficou estagnado na cultura do Agreste: a produção imagética do barro. "O objetivo é lidar com o barro a partir da questão antropológica, histórica, arqueólogica, porque terá vídeo, performance..., fazendo um resgate dessa potência. Não é só um evento", adianta Mélo, que homenageará Mestre Galdino nesta edição. "O município tinha muito viva essa produção do barro e de repente esse símbolo agrestino deixou de existir".

Tarcísio será responsável pela pesquisa, elaboração de oficinas com a comunidade, e por trazer a obra de Galdino para o universo contemporâneo. "Meu trabalho é descobrir como eclodir essa força que é muda, mas nunca deixou de existir e precisa se tornar audível com urgência. Preciso saber onde se manifesta esse estado de arte subjetivo que o barro representa".

Para responder a essas indagações, Tarcísio passou 15 dias em Riacho das Almas escutando e observando o ambiente e a comunidade, e elaborou um atlas visual iconográfico em que conecta obras de Galdino com várias questões mitológicas.

"Voltarei e farei uma oficina que resultará em um livro de arte e um documento, ao lado de um curador e de outros agentes artísticos. Quero trabalhar com jovens e entendê-los como pesquisadores da própria experiência", avisa Tarcísio.

 

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