O Brasil está prestes a completar um século de arte moderna

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22/10/2017

 

Em dezembro, marcam-se os 100 anos da primeira grande aparição pública de Anita Malfatti. A autonomia da cor em relação ao objeto, a abordagem plana e outros elementos não teriam sido suficientes para que a exposição fosse considerada o marco deflagrador do Modernismo no Brasil se o escritor Monteiro Lobato não tivesse escrito a famosa carta de ataque ao projeto estético modernista por causa da mostra da amiga – que, traumatizada, ficou um ano sem pintar.

Professora do Departamento de Artes Visuais da UFPE, artista e intelectual à serviço da construção de um pensamento crítico sobre a arte, Maria do Carmo Nino, nesta entrevista, fala sobre as consequências, presentes até hoje, da já centenária exposição e faz um paralelo entre o ataque a Anita e os investimentos de ordem moral contra a arte brasileira contemporânea. “Qualquer situação de ordem cultural por parte de instituições públicas e privadas que lide com um conteúdo passível de polêmica, deve advertir ao público, para que cada um individualmente decida sobre sua vontade ou não de tomar contato, em toda liberdade. Sou contra qualquer forma de censura e proibição”, afirma.

JORNAL DO COMMERCIO – Não tivesse havido a carta de Monteiro Lobato, a exposição de Anita Malfatti teria se tornado o marco inicial da arte moderna brasileira?

MARIA DO CARMO NINO – Entramos em terreno especulativo, aqui, a meu ver, não há como afirmar nada em definitivo. Acho que a carta foi um estopim, algo que deflagrou
uma situação que urgia vir à tona com a necessidade de modernização que alguns intelectuais já sentiam e para os quais fatores sócioeconômicos apontavam no eixo da região Sudeste. A exposição de Lasar Segall, ocorrida alguns anos antes, não surtiu este efeito. Era cedo demais, talvez.

JC – Que elementos podemos identicar no projeto estético de Anita para que ela possa sintetizar, como marco inicial, o modernismo brasileiro?

MARIA DO CARMO – Anita havia retornado de viagens ao exterior, tomado contato com uma renovação em termos da iconografia e da fatura em pintura, assim como no que concerne à liberdade e à autonomia da cor em relação ao tema abordado, afirmando-se como superfície bidimensional e afastando-se do modelo puramente mimético e naturalizado de poéticas anteriores. A preponderância da cor e da luminosidade características nossas no País é um fator muito importante para que a artista marque a sua singularidade.

JC – No que, exatamente, a exposição irritou tanto Monteiro Lobato ao ponto de ele escrever a carta sem nem antes ter visto a exposição?

MARIA DO CARMO – Pelo conteúdo da carta, percebe-se que ele tomou a exposição – mesmo reconhecendo o talento de Anita – como um mote para fazer críticas ao modernismo e às tendências que considerava simples modismos, citou nomes de artistas, alguns mais conhecidos do que outros, com os quais ela teria entrado em contato, e admirado o trabalho, outros que ele tinha conhecimento, mas não gostava do que faziam, pois via na pintura deles um acinte aos modelos que acreditava serem
perenes à arte em sua busca do belo.

JC – Anita ficou um ano sem pintar depois da crítica de Lobato. Ela tinha plena consciência do projeto de construção de uma brasilidade e de uma modernidade artística em sua obra?

MARIA DO CARMO – É também uma pergunta de cunho mais especulativo. Creio que ela tinha consciência de ter entrado em contato com uma maneira que lhe convinha em termos emocionais e também intuitivos de expressar-se, pela intensidade da cor, pela liberdade que representava dos modelos normativos vigentes no Brasil. Mas afirmar que ela teria “plena consciência do projeto de construção de uma brasilidade”, não creio.

JC – Podemos, aliás, falar em “um” modernismo brasileiro? A crítica e a história mais contemporâneas da arte no Brasil já possuem uma produção crítica mais consistente sobre como a cidade de São Paulo soube catalisar estrategicamente para si a hegemonia do discurso sobre a arte moderna do Brasil, que, ao eclodir, teria tido vários, mas não apenas um modernismo no Brasil... Enfim, por que a história ainda
considera o modernismo paulistano como o oficial, nesse contexto?

MARIA DO CARMO – Vejo o amadurecimento sobre as reflexões em torno dessas questões de como se deu o processo do modernismo no Brasil, as suas distintas etapas, diferenças regionais, implicações de ordem social, política e econômica assim como os distintos fatores de contextos históricos que puderam levar à sua eclosão, implantação e sedimentação, como necessários e muito importantes. O questionamento é fundamental, sempre, mas como tudo que se processa gradualmente, é lento em termos de uma assimilação mais ampla por parte do consenso geral, fora dos setores mais especializados da pesquisa em artes. Acredito, porém, que a importância do momento histórico ocorrido no eixo Rio/São Paulo permaneça uma referência no senso comum, por ter sido o primeiro a ter se constituído como uma real vontade de mudança.

JC – Na história da arte brasileira, a figura de Anita é sempre obliterada pela de Tarsila? Uma seria menor, artisticamente, que a outra?

MARIA DO CARMO – Não creio que se possa colocar as coisas desta forma. Me parece uma simplicação perigosa: ambas foram muito importantes, mas em momentos distintos do Modernismo. Enquanto Anita, mesmo à sua revelia, deflagrou a chama inicial e, talvez por temperamento também, tenha recuado em termos da ousadia que se percebe em suas pinturas após o evento ligado à polêmica com Monteiro, Tarsila chega em cena e atua intensamente em uma outra etapa, dentro de uma conjuntura que lhe foi favorável e contribuiu para que sua obra ganhasse com justiça uma imensa importância no que seria o processo do projeto moderno.

JC – A senhora percebe um retorno consistente da pintura, após os “excessos” da desmaterialização, dos suportes imateriais, da arte contemporânea? Isso se dá em
Pernambuco, a terra onde a arte abstrata mal ramificou?

MARIA DO CARMO – Não faz muito tempo, assisti a uma palestra no YouTube da historiadora alemã Isabelle Graw, feita em 2015, em um museu americano, onde ela postula claramente a vitalidade da pintura como forma de expressão, mesmo que seja um meio que tenha atravessado várias modicações ao longo das décadas,transformações estas que só atestam seu sucesso. Ela se concentra nesta apresentação em entender as razões desta vivacidade. Vejo a situação hoje no nosso Estado e no Brasil em geral como refletindo isto também. Acredito que a pintura (e seus avatares) nunca deixou de exercer um fascínio seja por parte do receptor, seja por parte do praticante das artes, mas o que caracteriza nosso tempo é a diversidade de práticas e meios, embora haja setores institucionais ou privados situados em várias áreas do País que possam ter preferência por determinadas linguagens. A imagem técnica que tem na fotograa uma referência de base, tem tido uma representatividade crescente na prática artística atual e isto reflete em setores como o institucional e de mercado.

JC – Percebe um retorno também (se é que houve ausência) do figurativismo – expressão clássica pernambucana – no Pernambuco contemporâneo? Esse figurativismo confirma ou rompe o acento patriarcal do modernismo?

MARIA DO CARMO - Este debate entre figura e abstração, eu não vejo como sendo um debate crucial com os quais a produção contemporânea (aqui, em outras regiões do Brasil, ou mesmo fora do País) se defronte, como foi o caso em algumas décadas atrás. Com o uso recorrente de outros materiais, dispositivos e formas de expressão, além das suas combinações possíveis com modelos mais tradicionais, vivemos um período de muita inclusão, isto é, onde a concomitância de várias tendências pode ser observada e aceita por setores diferenciados de legitimação do sistema em artes, sejam eles institucionais ou de mercado. Esta liberdade, a meu ver, é positiva, aumenta a responsabilidade da escolha dos artistas, embora se revele de maior complexidade para uma assimilação e discernimento por parte do público em geral.

JC – Anita Malfatti, duramente atacada por Monteiro Lobato, ficou um ano sem pintar até superar o trauma. Por que a arte contemporânea tem virado alvo preferencial de movimentos neoconservadores? A arte voltou a ter potência para incomodar além de suas fronteiras mais estritamente institucionais?

MARIA DO CARMO – Vivemos uma fase em que setores conservadores tentam tirar proveito demagógico, elegendo a arte como bode expiatório, com o intuito de manipular as massas a seu favor da defesa da ‘moral e bons costumes’ e, ao mesmo tempo, desviar a atenção sobre questões de ordem ética, socioeconômica e política, em transformação hoje nos bastidores do mundo político. Esta não é uma estratégia nova, ela é costumeiramente empregada para nos fazer esquecer ou não prestar a devida atenção ao que realmente importa, onde decisões são tomadas à nossa revelia e incidirão diretamente em nossas vidas.

LIMITE

JC – O ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, propõe uma extensão da classicação indicativa de idade também para exposições. Deve haver limitação de idade para exposições?

MARIA DO CARMO – Qualquer situação de ordem cultural por parte de instituições públicas e privadas que lide com um conteúdo passível de polêmica, deve advertir ao público para que cada um individualmente decida sobre sua vontade ou não de tomar contato, em toda liberdade. No caso de menores, a decisão compete ao adulto responsável pelo mesmo. Assim opera uma democracia que se preza e merece este nome. Sou contra qualquer forma de censura e proibição, porque acredito que se estabeleça uma situação que nos infantiliza, se arvorando o direito de decidir por nós, e não nos deixam decidir responsavelmente e em toda consciência sobre o que nos convém ou não.

 

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