Paradoxos da democracia à brasileira

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04/12/2017

 

A ideia é discutir alguns caminhos adotados em busca da afirmação do ideal democrático no Brasil e seus paradoxos, sobretudo a partir dos últimos acontecimentos envolvendo a crise no Rio de Janeiro, a tentativa de implementação de um “semipresidencialismo” (sic) e o depoimento concedido pelo advogado Rodrigo Tacla Durán à CPI da JBS.

Um dos paradoxos da democracia envolve a tentativa de controlar a hipertrofia da política e da economia pelo direito; como se o direito pudesse, como num passe de mágica, ser o redentor de uma espécie de “paz social”; controlando as dinâmicas de poder pela sua própria força. Ou seja, o direito seria “a força que engoliu a própria força”; nas palavras de Tobias Barreto em suas “Questões vigentes”.

Constituição de 1988
No caso da Constituição de 1988, as regras nelas contidas, pensadas em um contexto de ruptura com o regime militar; com foco no modelo de proteção ao elemento de representação do povo numa democracia, pareciam servir como antídoto a um possível retorno da ditadura naquele contexto dos anos 80.

Ao que parece, esse mesmo sistema normativo e principiológico voltado à proteção do povo pode; em outro momento histórico em que só se torna “representante do povo” quem constrói pautas a partir de alianças nem sempre republicanas com os demais setores da sociedade; inclusive a economia que gira em torno do crime organizado; legitimar a própria estrutura que diz desejar combater e, paradoxalmente, sem a qual os negócios dos representantes, lícitos ou não, possam seguir em frente.

Parlamento
Essa é a situação da imensa maioria dos membros de nosso parlamento e, na situação concreta envolvendo a casa legislativa do Estado do Rio de Janeiro; quase a sua totalidade. Ou seja, as regras de proteção daquele que se coloca como representante do povo pode funcionar; a partir das mudanças nas formas de cooptação e de acesso ao poder; como escudo para a perpetuação de falcatruas.

A queda de braço que vimos nas semanas que passaram mostram que o resultado prático dessa “lambança”; para usar uma palavra do momento, é a guerra, permitida pelo STF, entre o Judiciário e o Legislativo.

Decisão
Com a decisão que beneficiou Aécio, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro decidiu por retirar da prisão a cúpula “picciânica”; pelo que, incontinenti, a justiça, com magistrados esbravejantes; algo fora de qualquer padrão que se espera de quem ocupa cargo tão relevante; decide pela volta dos “picciânicos” à cadeia.

Independentemente do debate de quem “está com a razão”; o que transparece é uma disputa de poder, e nessa o judiciário vem ocupando mais e mais espaço. Outro paradoxo: uma pretensa democracia estabelecida por meio de pessoas não chanceladas pelo sufrágio universal; algo no mínimo complicado de se entender na dinâmica desse regime político.

Judiciário
Falando no judiciário, não podemos nos esquecer do auxílio luxuoso do ministro Alexandre de Moraes; que busca a todo custo sedimentar a velha “democracia sem povo” ao ressuscitar o Mandado de Segurança 22.972, de 1997. Você não leu errado: faz 20 anos que esse MS dorme em berço esplêndido nas gavetas dos ministros do STF. De repente e às avessas, como se a cartola quisesse sair de dentro do coelho; o referido ministro levanta a bola do que pode ser a pá de cal para sacramentar de vez “o grande acordo nacional, com supremo, com tudo”.

Agora o Supremo teria o papel de permitir, ao arrepio da vontade popular manifestada no plebiscito de 1993, o parlamentarismo que fora naquela consulta rejeitado de forma peremptória pelo povo brasileiro.

Só que o eufemismo para permitir tal pachorra seria o “semipresidencialismo”; algo que não se vê em quaisquer livros jurídicos sobre formas de governo e temas assemelhados. Uma tentativa de, por meio da utilização de um nome de fantasia; driblar a vontade popular expressamente consultada sob a égide da ordem constitucional de 1988 para tal fim; e o povo disse não ao parlamentarismo quando consultado sobre a possibilidade de sua implementação no Brasil.

Mais um paradoxo: a decisão do STF que se diz democrático ao arrepio da vontade explícita do povo. Claro que a resposta à pergunta “quem é o povo?”, por mais complexa que seja, não pode, no caso brasileiro, deixar de considerar a deliberação já tomada diretamente via plebiscito.

Ainda no jogo de cena envolvendo o poder, tivemos esta semana o depoimento prestado pelo advogado Tacla Durán à CPI da JBS. Assisti a todo o depoimento pela internet, já que a “grande mídia”, à exceção da coluna Painel da Folha de S. Paulo, praticamente ignorou esse episódio, e, quando dele tratou, nada mais fez do que selecionar aquilo que a ela interessa: a informação de que o ex-procurador geral da República Rodrigo Janot pode ter utilizado documentos inverídicos para fundamentar a segunda denúncia contra Temer.

Lava Jato
Mas todos nós sabemos que quando se quer exibir demais certa forma de compreensão é porque há outros tantos elementos a esconder. Afirmar algo é ocultar outros tantos.

E Tacla Durán enfrentou outros temas espinhosos à Lava-Jato; como a possível participação do advogado Carlos Zucolotto Junior, padrinho de casamento de Sérgio Moro; na negociação de um bom acordo de delação premiada de forma a livrar Tacla das consequências do direito de forma célere.

Propina
Mas isso envolveria o pagamento de R$ 5 milhões, “por fora”; para poder “resolver o pessoal que vai ajudar nisso”; como diz o print do celular utilizado como prova do contato entre os dois.

Na transcrição do print da tela do celular, Zucolotto diz a Tacla: “meu contato vai conseguir que DD entre na negociação”. Outra passagem do depoimento menciona que onipresente Marcelo Miller, o da “lambança”; teria entregue uma lista com nomes de políticos para que Tacla pudesse implicá-los numa possível delação, o que, dentre outros fatores, mataria o caráter “espontâneo” que em tese caracterizaria uma colaboração premiada.

Zucolotto
Sendo verdade o que Tacla Durán teclou com Zucolotto, temos uma verdadeira trama de ares hitchcockeanos; em que os que posam de heróis protegidos pelas togas e pelos cargos são também bandidos à sua maneira.

No afã de “limpar o Brasil”, vemos como, em nome do discurso vazio da moralidade; é possível cometer as maiores atrocidades contra a democracia no país. E o mais irônico e paradoxal: a possível prática de atos criminosos justificados como sendo uma defesa das instituições e do estado democrático.

Como diria Manuel Bandeira, “tão Brasil”.

Alexandre da Maia, é professor e coordenador do curso de graduação da Faculdade de Direito do Recife – UFPE e professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.

 

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