Pesquisa revela quem financia as violações no 'Patrulha da Cidade'

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05/12/2017

 

A Constituição de 1988 estabelece que a programação televisiva deve atender às finalidades artísticas, culturais, educativas e de respeito aos valores éticos da pessoa e da família. Na contramão disto, os programas policialescos se estruturam em narrativas que disseminam ódio e intolerância. O programa televisivo Patrulha da Cidade, exibido pela TV Ponta Negra, afiliada do SBT no Rio Grande do Norte, é um exemplo de uma mídia que viola direitos humanos.

Seguindo a metodologia proposta pela pesquisa “Violações de direitos na mídia brasileira: guia de monitoramento”, desenvolvida pela ANDI Comunicação e Direitos, em parceria com outras organizações sociais, em outubro de 2017, estudantes da UFRN realizaram o monitoramento de doze edições do programa Patrulha da Cidade, somando mais de 17 horas de gravação.

Além de constatar 737 violações de direitos humanos (média de 56,69 por dia), a pesquisa objetivou mapear quem, afinal, financia estes programas, pagando as propagandas nos intervalos comerciais e/ou merchandising durante a exibição. A pesquisa levantou 34 marcas financiadoras dos programas. Boa parte delas escolas, farmácias, supermercados e empresas de segurança.

Vale destacar que a condução do programa privilegia a construção do cenário de medo. As matérias e notícias expostas, unidas às falas do apresentador e do repórter, criam no imaginário do espectador um ambiente inóspito e completamente inseguro. Logo em seguida, estrategicamente, o merchandising das empresas de segurança entra em ação, para então fortalecer a “necessidade” de segurança para a população telespectadora.

Também chama a atenção o fato de existirem escolas que investem em comerciais nestes programas, visto que estas instituições deveriam promover a formação cidadã, além de garantir o cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990).

A partir do mapeamento realizado, será possível incidir sobre os anunciantes, mostrando a eles a associação direta entre a marca e as violações de direitos cometidas nos policialescos. É provável que parte destas empresas anunciantes não conheça a fundo o conteúdo veiculado por estes programas. Então, o objetivo é mostrar que esta é uma conta que, no final, pode sair cara. Tanto para a marca quanto para o cidadão, vítima de uma programação que desrespeita direitos.

O primeiro monitoramento realizado pelos estudantes do curso de Comunicação Social da UFRN foi realizado em abril, quando eles mapearam exclusivamente as violações de direitos humanos cometidas no Patrulha da Cidade. Os doze programas monitorados, que somavam mais de 16 horas, apresentaram 399 violações – uma média 33,5 violações em cada exibição.

Fazendo um comparativo entre os dois monitoramentos, é perceptível um aumento de 84% no número total de infrações detectadas, representando uma crescente quando o assunto é violação de direitos.

Dentre as violações encontradas, vale citar o desrespeito à presunção de inocência; exposição indevida de pessoa(s); exposição indevida de família (s); e discurso de ódio e preconceito de raça, cor, etnia, religião, condição socioeconômica, orientação sexual ou procedência nacional; entre outras que compõem a metodologia da pesquisa.

No desdobramento dos dados também foi possível detectar que as pessoas que mais possuem seus direitos violados são as acusadas de crimes e seus familiares, representando 80% no primeiro monitoramento e 49% no segundo. No âmbito da cor/raça, a maioria das pessoas que têm seus direitos violados são pretos e pardos. Em outras palavras, há uma naturalização da ideia de que os suspeitos não são sujeitos de direito algum, sobretudo, quando pretos e pobres.

O monitoramento faz parte do projeto de pesquisa “Afinal, quem paga a conta?”, coordenado pelo professor Daniel Meirinho e realizado em parceria com a disciplina “Comunicação, Mídias e Direitos Humanos”, ministrada pela professora Aline Lucena, no Departamento de Comunicação Social da UFRN.

Patrulha da Cidade

O Patrulha da Cidade é um programa policial líder em audiência, exibido de segunda à sexta-feira, com início ao meio dia e duração média de uma hora e quinze minutos. Esse conteúdo midiático visa televisionar através de reportagens a nível estadual: ações policiais, assassinatos, roubos e assaltos, mortes, estupros, drogas, rebeliões, sequestros e tragédias, bem como situações cotidianas em que está inserida essa população. Mas muitas das narrativas violam direitos.

O apresentador, Cyro Robson (conhecido como Papinha), entra como uma figura importantíssima no reforço das violações, com falas que promovem o discurso de ódio e preconceito, incitam a desobediência às leis ou às decisões judiciárias e, muitas vezes, incitam o crime e a violência. Em um dos programas, ele disse: “Enquanto tão matando os bandidos, é um a menos pra prejudicar a gente, né?”, em outro, afirmou, “Era bom que essa grade fosse daquela que o cara solta assim, né? Pra fechar. Na hora que ele botasse a cabeça: pluf!”, numa alusão à guilhotina e, portanto, à pena de morte.

Além de reforçar as violações, o apresentador assume um papel significativo perante o público, que o considera por muitas vezes um justiceiro ou algum tipo de herói, lutando incansavelmente para garantir a paz em uma cidade que apresenta altas estatísticas de violência. Com voz firme, sempre bem vestido, Papinha se destaca dos demais integrantes do programa, assumindo um protagonismo. É evidente o esforço em torná-lo um personagem “sério” da TV.

Em cada fala, gesto ou na variação do tom de voz, deixa clara a sua opinião e seu total desdém aos indivíduos marginalizados, em sua maioria de classe baixa e oriundos das periferias da cidade. As falas proferidas pelo apresentador são carregadas de desinformação, preconceito e desumanidade. Por muitas vezes, induzindo o telespectador a reproduzir o mesmo discurso.

Em alguns trechos, o apresentador chega a citar os direitos humanos como um recurso negativo, um verdadeiro vilão do “cidadão de bem”. Em uma situação específica, quando ele se vê encurralado em ter de omitir uma possível violação, profere: “Hoje em dia não dá pra falar nada, porque vêm os direitos humanos pra defender esses vagabundos.” E quantas vezes não se veem frases assim sendo repetidas na internet, em conversas de grupo ou no trabalho? O programa que se coloca como jornalístico, mistura opinião e entretenimento travestidos de informação, e é nessa opinião disfarçada de notícia que a sua influência conquista espaço.

A expressão “quer papinha pro neguinho?” (bordão do apresentador), reforça o tratamento duro aos que estão em situação de marginalidade, ou seja, sem moleza para os criminosos. O seu bordão deixa bem claro que marginal é “neguinho”. Além de reforçar um preconceito racial e econômico, o programa passou a ter vinhetas com vídeos caseiros enviados por fãs, onde crianças com uma colher na mão dizem o bordão do apresentador. Vale ressaltar que Cyro Robson apresenta todo o programa com o mesmo objeto nas mãos, símbolo da justiça: a colher.

Vitórias importantes

Na ausência de um órgão ou agência reguladora autônoma de caráter federal, que possa realizar o acompanhamento das violações e impor sanções aos casos mais graves, tem sido a sociedade civil e os pesquisadores nas universidades, os responsáveis por mapear as violações, produzir denúncias e encaminhá-las ao Ministério Público Federal (MPF). E este esforço tem trazido bons resultados – embora ainda lentos diante da gravidade do programa.

Em novembro deste ano, a TV Jornal, afiliada do SBT em Pernambuco foi condenada a pagar multa por danos morais coletivos por expor e humilhar crianças durante o programa Bronca Pesada, que era apresentado pelo controverso Cardinot. O caso foi denunciado pela sociedade civil há cerca de 10 anos, mas só agora houve decisão da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Infelizmente, no entanto, a multa – irrisórios R$ 50 mil reais – está muito aquém do R$ 1 milhão pedido pelo MPF, o que acaba não cumprindo o papel de impedir novas violações.

Outra vitória recente aconteceu na última sexta-feira, dia 1º de dezembro. Após a 3º audiência contra o jornal AquiPE, realizada pelo Ministério Público Estadual de Pernambuco (MPE-PE), ficou definido que o jornal terá que publicar nos dias 11, 12, 13, 14 e 15 de dezembro, matérias de uma página sobre temas relativos aos direitos humanos. Trata-se de uma tentativa de minimizar os danos causados pela publicação, em 01/09/2017, de imagem de capa que mostrava a genitália de uma mulher brutalmente espancada até a morte pelo ex-companheiro. Não por acaso, Diana, como se chamava, era mulher negra e pobre – o que no Brasil parece ser condição autorizativa para toda uma “sorte” de violações à dignidade na mídia.

A ação foi resultado de uma articulação de entidades e organizações da sociedade civil que fazem parte do Fórum Pernambucano de Comunicação (Fopecom) e do Observatório de Mídia da UFPE (leia aqui a Nota de Repúdio assinada por dezenas de entidades). Os programas serão exibidos na proximidade do dia 10 de dezembro – Dia Internacional dos Direitos Humanos – e devem pautar temas como “Igualdade Racial”, “Populações Socialmente Excluídas”, “Direitos das Mulheres”, “Feminicídio” e “Direitos Humanos e Liberdade de Expressão”.

Universidades são fundamentais

Estas pequenas vitórias apontam para a necessidade de ampliar as parcerias para combater as violações de direitos humanos no rádio e na TV. Desde 2015, organizações da sociedade civil têm empreendido um esforço comum para mapear as violações de direitos humanos cometidas nestes programas. Naquele ano foi realizado monitoramento de 28 programas (9 de rádio e 19 de TV), exibidos em 10 capitais brasileiras, ao longo de 30 dias. Foram detectadas, à época, 1.936 narrativas com violações que ultrapassam 4.500 violações de direitos humanos.

Os objetivos destes monitoramentos são, entre outros, mobilizar a sociedade para a importância da pauta e produzir subsídios para atuação do MPF nos estados. A Procuradora Federal dos Direitos dos Cidadãos (PFDC), bem como as filiais regionais do órgão, têm sido os principais parceiros institucionais na empreitada que visa acabar com as violações de direitos na mídia. A construção de parcerias para realizar monitoramentos torna-se, portanto, uma tarefa essencial para que novos subsídios sejam produzidos.

Este é o objetivo da Campanha Mídia Sem Violações de Direitos, lançada em 2016. Esta também tem sido a perspectiva de alguns observatórios de mídia que estão sendo criados no Brasil, entre os quais o Amaru – Observatório Latino Americano de Comunicação, Mídias e Direitos Humanos, lançado no dia 28 de novembro na UFRN, ao qual está integrado o projeto de pesquisa “Afinal, quem paga a conta?”. As iniciativas atuais, envolvendo a academia, também se inspiram na Campanha “Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania”, coordenada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, nos primeiros anos da década de 2000.

 

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