Lia de Itamaracá: após 'Bacurau', Rainha da Ciranda lança primeiro disco em quase dez anos

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20.10.19

RIO — Em cartaz nos cinemas, “Bacurau” abre com o cortejo fúnebre de Dona Carmelita, a matriarca da fictícia cidade pernambucana que dá nome ao filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A despeito da morbidez de sua personagem, porém, Lia de Itamaracá está gritando aos quatro cantos (e através de diferentes manifestações artísticas) a vivacidade de seus 75 anos — quase 20 a menos que Carmelita.

Neste domingo, às 21h30, a mais célebre cirandeira do país finaliza uma curta temporada no Rio com uma roda de dança ao ar livre, gratuita, no Museu de Arte do Rio (MAR), que encerra a edição deste ano da Feira Literária das Periferias (Flup). Antes, ela se apresentou no Circo Voador (quinta-feira, com o Jongo da Serrinha, pela Virada Sustentável) e participou, no dia seguinte, de um bate-papo sobre o livro-reportagem “Lia de Itamaracá”, biografia lançada em julho em parceria com o jornalista conterrâneo Marcelo Henrique Andrade.

— O livro repassa toda a minha trajetória, desde os tempos de escola, na Ilha de Itamaracá. Sou a única de 18 irmãos que decidiu trabalhar com música. Desde pequena, por gostar de ouvir o povo cantar, meu sonho era ser cantora também. Agora, são mais de 60 anos dedicados à música, sem parar. Quem está no mar não enjoa — conta Lia, que nasceu Maria Madalena Correia do Nascimento, na pequena ilha da Região Metropolitana de Recife, onde sempre morou. — A praia é o lugar onde eu me inspiro. Tudo vem dali. A música vem dali, o balanço do mar me traz as melodias, as letras, a dança...

Patrimônio Vivo de Pernambuco, a artista carrega com orgulho, por onde passa, a bandeira da ciranda — ofício que lhe rendeu diversas homenagens, como os versos “Eu sou Lia da beira do mar/ Morena queimada do sal e do sol/ Da Ilha de Itamaracá”, compostos por Paulinho da Viola na canção “Eu sou Lia”. A atual turnê, “Ciranda de ritmos”, na qual passeia por diversos ritmos populares da música pernambucana, como o coco e o maracatu, rodou o Brasil por anos e chegou à Europa (“os europeus apoiam e amam a ciranda, mas quem ama mais sou eu”), até se encerrar neste mês.

Agora, Lia se prepara para um novo capítulo. No próximo dia 8, chega às plataformas digitais “Ciranda sem fim” (Natura Musical) , quarto álbum da discografia da cirandeira e o primeiro desde “Ciranda de ritmos” (2010). O trabalho de onze faixas é produzido pelos também pernambucanos DJ Dolores e Ana Garcia, e traz não só uma brincante de ciranda mas também uma cantora que se aventura por novos ritmos, como o bolero e o brega, e faz uma fusão entre tradição e contemporaneidade. Entre os compositores, nomes atuais, como Ava Rocha, Iara Renó, Alessandra Leão e Chico César, e de tempos passados, como o cantor brega mineiro José Ribeiro.

— Eu tive que compor uns boleros e músicas românticas para uma série de TV, e ali percebi que seria legal ter a Lia cantando essas canções. Ela tem o poder de tornar qualquer música muito verdadeira. O processo me lembrou muito o que o (produtor americano) Rick Rubin fez com o Johnny Cash no final da carreira, que dava corpo a qualquer tipo de música que cantava — comenta o DJ Dolores, que vai assinar também a direção do novo show, com estreia marcada para o dia 16 de novembro, no festival Coquetel Molotov, em Recife, onde Lia será uma das headliners.

Lia diz ter se sentido confortável ao dar voz para outros ritmos, mas avisa:

— Não vou deixar de ser cirandeira nunca! Mas cantei também outras coisas pensando em agradar o público, quero que todo mundo goste.

Disco, turnê, filme, livro... Num 2019 incansável e arretado, Lia ainda foi homenageada pelo bloco O Galo da Madrugada, em Recife, e condecorada Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

— Demorou, mas quando apareceu eu disse “manda que eu quero”! — brinca a agora doutora, sobre as honrarias. — Temos que manter viva e valorizar a ciranda, as tradições nordestinas, os mestres que temos. Eu mesma digo: se alguém quer fazer alguma coisa por mim, que faça viva, porque depois que eu morrer, não quero mais, não. Não é porque eu quero ser a rainha da cocada preta, mas quem está com o mastro da ciranda sou eu. É pesado, mas é gostoso e eu me orgulho de carregar.
Crítica
Tradição em forma moderna
Por Sérgio Luz

Parte da capa de 'Ciranda sem fim', novo disco de Lia de Itamaracá Foto: DivulgaçãoParte da capa de 'Ciranda sem fim', novo disco de Lia de Itamaracá Foto: Divulgação
Quem nunca ouviu Lia de Itamaracá, a mais célebre cirandeira do Brasil, pode estranhar o timbre anasalado de sua voz. Mas a aparente fragilidade de seu canto, que não preza por qualquer tipo de exatidão técnica, emana a força de uma sabedoria ancestral, assim como ocorria com Nelson Cavaquinho, expressando uma verdade/vivência quase irrefutável sobre tudo o que há de doce e amargo na experiência humana.

Aos 75 anos, a artista pernambucana chega repaginada ao seu quarto disco, “Ciranda sem fim”, sucessor de “Rainha da ciranda” (1977), “Eu sou Lia” (2000) e “Ciranda de ritmos” (2010).

Com produção de DJ Dolores e Ana Garcia, o álbum trafega por diferentes gêneros, todos embalados por uma sonoridade moderna, mas que não desvia de seu norte, a tradição oral e popular da cultura brasileira.

O repertório abre com “Falta de silêncio” (Alessandra Leão), num arranjo etéreo marcado pelo sintetizador de Leo D e pelos ruídos de Benke Teixeira, guitarrista da banda goiana de rock psicodélico Boogarins. Esse cartão de visitas deixa claro o bom gosto e o respeito de Dolores ao desconstruir essa ciranda quase mantra, sem exagerar na utilização dos novos elementos inseridos na música de Lia, num disco em que se destacam os baixos e guitarras de Yuri Queiroga, conterrâneo da cantora.

Assim como Gal Costa e Elza Soares se reinventaram ao apostar em produtores e compositores jovens, Lia brilha ao cantar temas como a dançante “Mulher peixe” (Iara Rennó/Ava Rocha), “Lua ciranda” (Juçara Marçal/Alice Coutinho) e “Companheiro da solidão”, do próprio DJ Dolores, em música que poderia ter saído de uma trilha de Quentin Tarantino.

Outros pontos altos são o bolero “O relógio”, escrito pelo mexicano Roberto Cantoral nos anos 1950 — e sucesso no Brasil na voz de Altemar Dutra —, com um belo final de diálogo entre suaves solos de sopros, e “Ciranda sem fim para Lia” (Lucio Sanfilippo), que pode ser ouvida como uma melancólica marcha de carnaval.

Há ainda a pérola “Desde menina”, escrita por Chico César para Lia, e um final apoteótico com “Pot Pourri (Vem pra cá morena / Santa Teresa / Despedida)”, conclamando a todos para cirandar.

“Eu sou menina a vida inteira / estou na beira de me jogar”, canta Lia em “Peixe mulher”. Os versos, ornados pelos timbres contemporâneos dos arranjos, podem servir como um convite para que novas gerações possam se jogar na obra dessa grande artista, não à toa nomeada como um Patrimônio Vivo da Cultura de Pernambuco.

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