Uma breve história de um modelo de membrana biológica

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22.07.2021


Membranas biológicas (MBs), estruturas fundamentais na manutenção da vida, separam o meio interno (citoplasma) do meio externo e definem compartimentos dentro da célula. MBs são, em grande parte, formadas por lipídios, moléculas anfifílicas constituídas por uma região polar (solúvel em água) e uma região apolar (também denominada hidrofóbica ou insolúvel em água) (Figura 1A). Outras moléculas, como proteínas, carboidratos e até RNA, podem fazer parte das MBs.

 

A ideia de que a célula é uma solução delimitada por uma barreira provém da observação que as células respondem à tonicidade do meio, indicando a presença de uma membrana semipermeável. Os modelos de membrana para estudo de osmose - termo introduzido em 1854 pelo químico T. Graham- assunto muito popular na época, ajudaram a fundamentar essa ideia, que foi reforçada pela demonstração da assimetria na distribuição iônica dentro e fora da célula. A relação entre a hidrofobicidade de solutos e sua captação por tecidos vivos, levou a C.E Overton, no fim do sXIX, a propor que a membrana celular teria natureza lipídica

Assim, no começo do sXX duas noções básicas das características dessa membrana eram aceitas: uma fronteira física de natureza lipídica que apresenta respostas osmóticas. O modelo usado hoje para descrever as MBs é o mosaico fluido. Neste modelo, lipídios formam uma estrutura de bicamada, com as porções polares expostas para a água tanto no meio interno quanto no meio externo, e com as regiões apolares formando uma região hidrofóbica desidratada. Esta orientação específica dos lipídeos na bicamada é impulsionada pelo chamado efeito hidrofóbico, que promove a separação da água e do óleo. Ainda, no mosaico fluido, proteínas e carboidratos estão distribuídos nesse “mar” de lipídeos. É justamente porque este modelo é hoje tão aceito, usado até nos cursos de biologia do ensino médio, que entender a sua origem, bem como a evolução dos seus pressupostos, é de nosso interesse.

O estudo de sistemas simples, compostos por óleos na interface da água iniciam a nossa história. Em 1774, Benjamin Franklin publicou um artigo descrevendo como gotas de óleo diminuiriam a formação de ondas na superfície da água – marinheiros de algumas regiões da Europa tinham a superstição de jogar óleo na água para “acalmar o oceano”. Franklin também notou que gotas de óleo adicionadas à superfície da água se espalham, formando filmes muito finos, enquanto gotas de óleo adicionadas a superfícies sólidas, como o mármore, permanecem em forma de gotas com poucas deformações.

Em 1890 Lorde Rayleigh, utilizando um recipiente de área definida, determinou que a espessura da camada de óleo necessária para recobrir a completamente a superfície, sem excesso ou déficit de material, era 1,63 nanômetros (nm), quase 43.000 vezes menor que a espessura de um fio de cabelo! Essa medida foi consideravelmente aprimorada por Agnes Pockels, uma cientista autodidata que desenvolveu sozinha, em casa, um aparato experimental que possibilita medir a espessura da camada de óleo com precisão muito maior. Pockels corrigiu a medida de Rayleigh (1,30 nm) e ainda concluiu que a espessura da monocamada depende do tipo de óleo utilizado.

O próximo grande salto nesta história ocorreu em 1917, quando Irving Langmuir aprimora o sistema desenvolvido por Pockels e o utiliza para o estudo de moléculas anfifílicas na interface da água. Langmuir avança na interpretação dos dados, ao afirmar que as camadas formadas eram “monomoleculares” (camadas que possuem a espessura de uma única molécula), termo hoje conhecido como monocamada. Além disso, ele conclui que moléculas anfifílicas se orientam de forma preferencial na interface, com os grupos polares voltados para a água, e os grupos apolares expostos para o ar (Figura 1B). Segundo Langmuir, esse arranjo era devido às fortes interações entre a água e os grupos polares das moléculas anfifílicas, o que levaria os grupos apolares das moléculas anfifílicas a ficarem em uma região sem água, expostos para o ar. A orientação preferencial de moléculas anfifílicas na interface ar/água seria devida ao efeito hidrofóbico.

Os resultados de Rayleigh, Pockels e Langmuir, vistos como pertencentes a físico-química, não receberam muita atenção por parte da comunidade biológica até 1925. Evert Gorter, um pediatra, viu que os experimentos físico-químicos poderiam ser utilizados para determinar a estrutura de membranas biológicas. Nessa época, sabia-se que membranas eram compostas por lipídeos, mas não se sabia qual era a estrutura das membranas.

Gorter e seu estudante de pós-graduação, François Grendel, extraíram lipídeos de glóbulos vermelhos de diversos animais e, utilizando o aparato experimental desenvolvido por Pockels e aprimorado por Langmuir, determinaram a área ocupada por uma monocamada desses lipídeos. Como a área superficial de glóbulos vermelhos era conhecida, descobriram que a área ocupada pelos lipídios era duas vezes maior que a área superficial dos glóbulos vermelhos. Concluíram que os glóbulos vermelhos deveriam ser recobertos por duas camadas de lipídios. Como Langmuir já havia definido que as regiões apolares dos lipídeos não ficam em contato com a água em monocamadas, Gortel e Grendel sugeriram que as duas monocamadas nas membranas se organizariam de forma a expor as suas regiões polares para a água (meio interno ou externo da célula), com as regiões apolares voltadas para o centro. Nascia, assim, o conceito de que as MBs são formadas por uma bicamada lipídica (Figura 1C).

Bangham e Horne validaram este conceito usando microscopia eletrônica observando a semelhança entre o padrão trilaminar da membrana externa das células e as estruturas formadas pela lecitina (uma mistura composta maioritariamente por fosfolipídios extraídos da gema de ovos) dispersa em excesso de água.

Em 1935, Danielli e Davson, utilizando argumentos de termodinâmica, medidas de tensão superficial e de permeabilidade, sugerem que na bicamada lipídica proposta por Gorter e Grendel também deveria existir um filme de proteínas globulares adsorvidas na interface. Este modelo foi chamado pelos autores de “modelo mosaico”, onde proteínas e lipídios são rígidos com poucos movimentos moleculares. Este modelo foi modificado por J. Robertson para acomodar proteínas não-globulares, adequando o modelo aos resultados de difração de raios-X. As proteínas ainda ficavam do lado externo da membrana celular. Este modelo de MBs (DDR, Figura 2A) foi aceito até o início da década de 1970.

Notamos aqui o peso conceitual de modelos aceitos, pois no Modelo DDR tanto as proteínas quanto os lipídios ocupavam lugares fixos e o sistema apresentava pouca mobilidade. É interessante (mas provavelmente pouco útil) se perguntar quanto este modelo estático inibiu reflexão e experimentos que podiam mostrar, muito antes, a dinâmica da membrana.

Em meados da década de 1960 imagens de microscopia eletrônica já demonstravam que algumas proteínas ficavam ancoradas na bicamada lipídica, e não adsorvidas na interface, como proposto no modelo DDR. Nessa mesma época, Benson e Green demonstraram que fragmentos contendo proteínas e alguns lipídeos poderiam ser separados das membranas internas de mitocôndrias, e que estes fragmentos reconstituídos em membranas lipídicas recuperam atividade. A partir desses dados, Benson propôs um modelo (Figura 2B) no qual algumas proteínas estariam fortemente associadas a lipídios e inseridos nas bicamadas lipídicas, ainda rígidas.

No início da década de 1970, dois modelos distintos de MBs eram debatidos (Benson e DDR). Ambos explicam somente algumas propriedades de membranas. Por exemplo, em 1968, Luzzati havia demonstrado que as cadeias apolares dos lipídeos de membranas se pareciam mais com um líquido (possuíam alta mobilidade) do que com um sólido. Tal observação não era explicada por nenhum dos dois modelos, nos quais os lipídios da bicamada seriam rígidos.

Em 1972, Singer e Nicolson publicam um artigo intitulado “The Fluid Mosaic Model of the Structure of Cell Membranes” ou “O Modelo do Mosaico Fluído da Estrutura de Membranas Celulares”. Mais uma vez, o modelo se baseia no efeito hidrofóbico e em diversas observações experimentais, incluindo importantes medidas de mobilidade de lipídios e proteínas nas bicamadas. Os resultados de mobilidade fazem com que Singer e Nicolson chamem o modelo de “mosaico fluido”, em oposição às estruturas rígidas propostas anteriormente. No modelo do mosaico fluído, os lipídeos podem se mover livremente, formando um “solvente” no qual as proteínas podem estar ancoradas (Figura 2C). Contudo, os lipídeos não devem ser vistos como coadjuvantes neste modelo, como os próprios autores discutem, pois interações específicas lipídio-proteínas são fundamentais para a manutenção das funções de proteínas de membranas. Uma evidência disso é a enorme variedade de lipídios existentes que podem compor membranas e as diferentes proporções de lipídeos e proteínas que podem ser encontradas em células. Apesar disso, a grande maioria das membranas celulares deveriam compartilhar das propriedades descritas (e previstas) pelo modelo do mosaico fluído. Diversas observações suportavam (e suportam) o modelo, e a sua capacidade preditiva fez com que os outros modelos fossem abandonados, sendo, hoje, o modelo do mosaico fluído a visão canônica sobre a estrutura de membranas.

A discussão sobre o modelo canônico fica para outro artigo, pois evidências mais recentes colocam em tela a generalidade do modelo do mosaico fluido.

Filipe da Silva Lima é Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Caroline Dutra Lacerda e Hernan Chaimovich são Professores da Universidade de São Paulo (USP)

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