Idolatria digital: relação entre fãs e ídolos é mais intensa e íntima do que nunca

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19.09.2021


Enquanto Anitta dava entrevista no tapete vermelho do MTV Video Music Awards, no domingo passado em Nova York, dizendo que seus fãs são “intensos e loucos, no bom sentido”, Tainá Lacerda, de 21 anos, comandava um bate-papo virtual com cerca de 800 Anitters, como seus fãs mais ardorosos se chamam.

A carioca cantou “Girl from Rio” no intervalo do prêmio e, por questões comerciais, o fandom (de fan kingdom, ou “reino dos fãs”) não conseguiu assistir à apresentação na MTV Brasil. Tainá, diretamente de Olímpia, em São Paulo, tentava acalmar os ânimos (“são novas conquistas para ela”, dizia).

Moderar o discurso dos Anitters, numa espécie de coach para integrantes de fã-clube, é um dos papéis que a jovem assumiu. Ela é administradora de seis perfis sobre a cantora no Twitter que, somados, chegam a 193 mil seguidores. E ainda encontra tempo para cuidar de uma página no Facebook, duas contas no Instagram e outra no TikTok. Se os fãs exigem muito, reclamam muito, provocam muito, ela tenta desacelerar a batida.

Dá trabalho. Ela própria costuma dar suas cutucadas na carreira da cantora, ou melhor, na gravadora da cantora. Integrante de fandom é assim: venera, mas também não passa pano para seu ídolo.

— Sempre alerto: mantenham a calma. Pressão, vindo de fã, acaba sendo mais prejudicial do que favorável —analisa Tainá.

Este nível de envolvimento é uma amostra de como anda intensa e íntima a relação entre fãs e ídolos na era digital. Muito se sabe sobre os estragos que o ódio e os haters provocam dentro e fora das redes, mas excesso de amor também atrapalha? Para estudiosos do tema, nunca se viu tando fã dando pitaco na vida pessoal e profissional do ídolo.

— Estamos percebendo um esgarçamento da figura do fã em relação aos ídolos — diz Thiago Soares, coordenador do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (GruPop) da UFPE. — Há um excesso afetivo, que traz à tona a dinâmica de intervenção no ídolo. Amar demais também é perigoso, cria a ilusão de posse e fetichização, com tentativas de se apropriar.

Um dos aspectos que distinguem os fãs de hoje e de outrora (Beatlemaníacos ou Hansonmaníacos, por exemplo) é a intensidade dos sentimentos e a aparente intimidade propiciada pelas redes digitais.

—Estamos num momento, acirrado pela pandemia, de intromissão e cobranças, até na vida de pessoas comuns —diz a professora Adriana Amaral, coordenadora do laboratório CultPop da Unisinos.

No meio musical, a maioria dos fandoms mantém um olho no ídolo e outro nas gravadoras, neste caso, assumindo sem pudor o papel de hater. A turma de Pabllo Vittar, os VittarLovers, por exemplo, anda furiosa achando que a Sony Music tem dado mais atenção a Luan Santana, que entrou para o elenco no início do ano, enquanto a drag queen está na empresa desde 2017.

Em aspectos comerciais, há quem organize mutirões para que artistas sejam contratados por determinadas marcas e até puxam a orelha se não gostam de algum #publi. No campo pessoal, é uma eterna DR, em que fãs elegem amizades ou relacionamentos a serem mantidos ou rompidos.

A ex-BBB e apresentadora Rafa Kalimann convive com esse “sentimento de propriedade” quando se trata de suas relações pessoais.

— Com meu último namorado, muitas fãs criaram situações para que não ficássemos juntos —conta Rafa. — Se estou mais próxima de uma amiga e não de outra, ficam com ciúme. É melindrosa a relação.

Para Xuxa, que acompanha a evolução do amor de seus baixinhos desde a cartinha até o direct do Instagram, o que pega mais hoje é a competição acirrada:

— Eles querem ver quais (contas deles) ganham mais likes, se eu sigo ou não. Se não sigo, ficam chateados, se sentem mal. Pessoas bem jovens têm um carinho que até falo: “Parecem minha mãe, ficam querendo saber a hora que eu cheguei, a hora que eu saí.”

Por mais que as ingerências soem desagradáveis (embora quase nenhum artista fale abertamente o quão incômodas elas são), é esse interesse inesgotável que mantém as estrelas nos holofotes.

—O ídolo não vive sem o fã. Ele é seu capital social — diz o professor da UFPE Thiago Soares. — Mas como colocar limites nessa base de pessoas de que se precisa tanto? É a pergunta do milhão.

O caminho mais seguro é o do diálogo. A atriz Larissa Manoela mantém os Larináticos por perto com interação nas redes e até em chat de Telegram (“É muita coisa para dar conta”, admite). Às equipes dos artistas, por sua vez, cabe um trabalho quase educacional.

— Resta-nos, como empresários e agentes, estarmos muito próximos desses fãs para explicar o que é bom — diz Julio Beltrão, um dos diretores da agência de influenciadores Mynd. — Nós dizemos: “Você queria que o artista assinasse com a marca X, mas, se ele preferiu a Y, existe um porquê.” Se trazemos esses núcleos para perto, colhemos bons frutos. Ajuda a reduzir bastante as gestões de crise.

Essa lógica nem sempre funciona, muito por causa do perfil fiscalizador dessas gerações. Pabllo Vittar que o diga. Recentemente, os VittarLovers fizeram um rebuliço nas redes porque ela não deu crédito à estilista do vestido que usou na capa do álbum “Batidão tropical” e por ter devolvido a peça numa sacola chinfrim. A turma queria, inclusive, que o stylist fosse demitido. Para o senso de urgência dos fãs, Pabllo demorou a pedir desculpas pelo ocorrido.

—Ficamos do lado dela (da estilista Jheni). Tem coisa que cansamos de passar pano — conta a carioca Lua Nunes, fã de 18 anos da cantora. — Mas, às vezes, a galera acha que pode mandar na Pabllo. Algo que reclamo bastante é que o pessoal nunca está feliz.

De fato, a insatisfação generalizada é outro sintoma dos nossos tempos, diz Thiago Soares:

—Os fãs sempre querem mais. Essa é a ideia de intensidade da vida em rede.

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