Demolição do patrimônio arquitetônico demonstra falta de valorização da história do Recife, lamentam especialistas

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27.10.2021

Nem só de igrejas antigas e construções do Brasil imperial vive a memória de uma cidade. Marcado por inúmeras mudanças durante seu processo de urbanização, o Recife teve, ao longo do tempo, edificações vanguardistas e prédios icônicos que, sem proteção, foram demolidos. O g1 conversou com especialistas em arquitetura para falar sobre a história arquitetônica perdida da capital.

"A necessidade de protegermos a memória existe porque a memória faz parte da gente, e nós nos reconhecemos na cidade. Quanto mais distantes ficamos desses referenciais, ficamos mais distantes da cultura e da história".

O depoimento é do arquiteto e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Luiz Amorim, estudioso da arquitetura do Brasil. Segundo ele, no século 20, por exemplo, a cidade se tornou uma referência modernista, com suas residências, prédios e estabelecimentos com elementos simples, mas surpreendentes, característicos do movimento artístico.

"Pela qualidade da nossa produção arquitetônica, especialmente no final dos anos 1970, alguns autores defendem que há especificidades no modernismo recifense. Isso não seria suficiente para virar uma escola, mas uma linha de desenvolvimento. É uma produção de referência internacional que não é reconhecida por nós, daqui, que não a reconhecemos como obras de um passado que precisa ser preservado", explicou o professor.

São inúmeras as edificações que, mesmo tendo algum valor cultural e afetivo para a cidade, foram demolidas, mesmo quando houve polêmica em volta disso. Um exemplo foi o Edifício Caiçara, na Avenida Boa Viagem, na Zona Sul.

A demolição Caiçara começou em 2013 e gerou revolta de arquitetos e historiadores. De estilo Art déco, o prédio foi construído no início dos anos 1940. Devido a um imbróglio judicial, a demolição só foi concluída em 2016. Atualmente, um prédio residencial é construído no local.

Outra edificação cuja demolição causou polêmica na cidade foi a do Sobrado 651, da Avenida Rosa e Silva, nas Graças, Zona Norte. O prédio veio abaixo em 2015, após liminares que impediam a derrubada serem cassadas pela Justiça.

Não se sabe ao certo quando o prédio foi construído, mas plantas da cidade de 1906 mostram que o sobrado já estava de pé nessa época. Por 46 anos, o edifício foi sede da Padaria Capela.

Após a demolição, foi construída uma farmácia no local. Ao lado dela, resistem duas casas geminadas modernistas, que, atualmente, são consideradas Imóveis Especiais de Preservação (IEPs).

"O caso da Padaria Capela é curioso porque, arquitetonicamente, não é tão característico de um lugar só. Mas o prédio tinha um valor para a comunidade, e tinha valor arquitetônico. Era um sobrado magnífico e mostra que esses valores, usados para preservar ou não algum imóvel, têm escalas diferentes", explicou o professor.

Outro exemplo é a Casa Miguel Vita, construída em 1958 por Delfim Amorim, pai do professor Luiz Amorim. Delfim foi um dos nomes da arquitetura modernista recifense. Na casa, que fica no bairro de Santana, na Zona Norte, morou a família do empresário Miguel Vita, dono da extinta marca de refrigerantes Fratelli Vita.

Na casa, que costumava ser uma espécie de atração turística local na segunda metade do século 20, passou a funcionar a sede da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH). O órgão mudou-se para um empresarial em janeiro de 2020 e, em outubro do mesmo ano, a residência modernista foi demolida. Um prédio residencial está sendo construído no local.

"Normalmente, a gente percebe na cidade edificações de maior porte. As casas acabam sendo invisíveis, porque são residências familiares. Mas foi nesses projetos que muitas ideias modernistas foram postas em prática e desenvolvidas com linguagens muito próprias", afirmou o professor.

Apesar disso, mesmo edificações mais seculares acabam sendo vítimas do processo de urbanização da cidade.

São exemplos as igrejas do Paraíso, demolida em 1940 para a abertura da Avenida Dantas Barreto (veja imagem no topo da reportagem); da Igreja do Corpo Santo, que deu lugar à Avenida Marquês de Olinda, e da Igreja dos Ingleses (veja imagem acima), demolida em 1946 nas obras da Avenida Conde da Boa Vista. No lugar dessa terceira, hoje fica o Cinema São Luiz, que funciona no térreo do Edifício Duarte Coelho.

Falta de proteção e educação patrimonial

Fundado em 1921, o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) se dedica a discutir "o direito à cidade e à arquitetura qualificada para todas as pessoas, pela preservação do patrimônio histórico, cultural, natural e social da cidade". Uma das co-presidentas do instituto, a arquiteta Beatriz Meunier afirma que falta, especialmente no Recife, educação patrimonial e políticas de proteção.

"Aqui, temos um problema grande com relação à arquitetura moderna, porque a conscientização da proteção só existe para coisas mais antigas. Por serem mais recentes, essa discussão acaba ficando mais restrita a arquitetos e historiadores. Por causa disso, não há medidas protetórias eficientes", afirmou a arquiteta.

Ainda segundo Beatriz Meunier, as políticas protetivas em relação a prédios mais recentes funcionam na base do "apaga-fogo".

"Quando existe uma casa legal à venda, o mercado imobiliário já cai em cima. Um grupo tenta ver medidas protetivas, mas, nesse meio tempo, alguém compra e derruba. E quem tem poder, quem compra, não tem interesse em preservar. É mais fácil derrubar e construir uma farmácia", afirmou.

Além disso, segundo o professor Luiz Amorim, mesmo quando tombados, os patrimônios não têm garantia de que serão protegidos. Isso porque, mesmo após o tombamento, a preservação é de responsabilidade dos proprietários, com exceção de poucos casos em que, para o Estado, é interessante preservar.

"O Recife é uma das menores capitais do país e o valor do solo é altíssimo. Se um terreno tem certa dimensão e você multiplicar por 80, que é um número possível num prédio residencial, o ganho de capital é imenso. O proprietário da casa acaba ganhando cinco ou seis apartamentos e existe uma troca de valor vendável que não leva em consideração o valor histórico e cultural", explicou.

Preservação

Por meio de nota, a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) informou que a responsabilidade de conservação de qualquer bem cultural material é do proprietário, e que uma das políticas estaduais de preservação do patrimônio é o tombamento.

No entanto, "há linhas de ação acessíveis ao público no Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura) para projetos de restauro, requalificação, recuperação, acessibilidade, conservação, entre outras intervenções físicas".

A prefeitura afirmou que "tem dedicado atenção especial à preservação do patrimônio histórico" e que a aprovação do novo Plano Diretor, no final de 2020, "aponta na direção de uma cidade cada vez mais sustentável e inclusiva, com especial atenção para os aspectos históricos do patrimônio".

A gestão informou que está em elaboração a revisão e atualização do Plano de Preservação dos Sítios Históricos (PPSH), de 1979. Na cidade, há dois principais mecanismos de preservação do patrimônio no município: os Imóveis Especiais de Preservação (IEP) e as Zonas Especiais de Preservação do Patrimônio Histórico-Cultural (ZEPH).

"Os IEP são imóveis que têm arquitetura singular ou que sejam importantes para a memória urbana e afetiva da cidade. O Recife tem hoje 262 unidades, sendo instituídas, neste ano, três delas: a Garagem de Remo do Náutico, o Clube Barroso e a Residência Isnard Castro e Silva", disse a prefeitura.

"As ZEPH são áreas formadas por sítios, ruínas e conjuntos antigos de relevante expressão arquitetônica, histórica, cultural e paisagística, cuja manutenção seja necessária à preservação do patrimônio histórico-cultural do município. As ZEPH requerem parâmetros urbanísticos específicos de uso e ocupação do solo, em virtude de suas características especiais. São 33 ao todo no Recife, entre as quais a ZEPH 09, correspondente a todo Bairro do Recife; a ZEPH 10 - bairros de São José e Santo Antônio e a ZEPH 05, relativa ao Poço da Panela", complementou, por fim, a gestão.

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por sua vez, afirmou que o tombamento não é o único mecanismo de proteção ao patrimônio cultural brasileiro e que dispõe de diversos mecanismos e políticas de proteção e salvaguarda do patrimônio.

Qual mecanismo usar, segundo o Iphan, geralmente depende da natureza do bem. Para o patrimônio imaterial, é possível fazer o registro, "que não apenas reconhece um bem de natureza imaterial como implica em ações de salvaguarda para a sua promoção, preservação e continuidade".

No caso de patrimônio material, o Iphan faz o tombamento, o cadastro de sítios arqueológicos (que também podem ser tombados) e a valoração do patrimônio ferroviário, que também pode ser tombado.

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