Sem banheiro para mulher e cantada no trabalho: o que as cientistas brasileiras enfrentam

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331/12/2022

A cada 10 pesquisadores das áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática no Brasil, apenas 3 são mulheres. Os dados pertencem à Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

Para ajudar a mudar esta realidade, a multinacional francesa de cosméticos L'Oréal realiza anualmente o prêmio Para Mulheres na Ciência, em conjunto com a Unesco e a ABC (Academia Brasileira de Ciências). No último dia 30, foi realizada a 17ª edição no país, com a seleção de sete vencedoras, cada uma contemplada com uma bolsa-auxílio de R$ 50 mil. Até hoje, o prêmio investiu R$ 5,1 milhões nos projetos das cientistas brasileiras.

Em âmbito global, a L'Oréal realiza o prêmio há 25 anos. São reconhecidas, todo ano, cinco cientistas, uma em cada região do mundo, pelas suas contribuições para a ciência ao longo de toda a carreira. O valor da bolsa é de de € 100 mil.

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De acordo com a empresa, são realizados anualmente 52 programas nacionais e regionais, em mais de 110 países, para a valorização do papel da mulher na ciência. Até hoje, 3.900 pesquisadoras em todo o mundo foram contempladas –cinco delas já receberam o prêmio Nobel. As mais recentes foram as americanas Emmanuelle Charpentier e Jennifer A. Doudna, que receberam o Nobel de Química em 2020.

Muitas das contempladas enfrentaram machismo e assédio moral ou sexual ao longo da carreira, uma vez que se trata de uma área predominantemente masculina. Confira histórias de três das sete vencedoras deste ano no Brasil:

mulher branca de cabelos curtos, veste calça e blusa azuis
Daiane Zuanetti, professora da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) - Divulgação
DAIANE APARECIDA ZUANETTI, 41, DOUTORA EM ESTATÍSTICA
Daiane Aparecida Zuanetti, 41, ainda se lembra de, quando criança, ficar em choque com a falta de disposição do irmão mais velho em estudar. "Eu sempre adorei os livros", diz ela, a segunda de três irmãos, que estudou a vida toda em escola pública. Os pais estudaram até o fundamental. "Minha mãe sempre me disse que quanto mais eu conseguisse estudar e aprender, maior seria minha libertação econômica, social e política."

Natural de Porto Ferreira (SP), ela viajava todos os dias 50 km até a UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos), também no interior de São Paulo, para cursar estatística. "Depois do mestrado, não quis emendar o doutorado. Achei melhor tentar um emprego no setor privado, para não ficar apenas na formação acadêmica", diz.

Ela trabalhou por sete anos em uma instituição financeira, mas decidiu sair, porque não queria seguir como executiva. Bateu a saudade dos bancos da universidade. Voltou para São Carlos e deu início ao doutorado. Hoje é professora da universidade e lidera um grupo de pesquisa.

Vencedor na categoria Matemática do prêmio da L’Oréal, o projeto de Daiane propõe métodos estatísticos eficazes para descrever tendências e fazer previsões a partir de dados genéticos. "Por meio dessas técnicas, podemos identificar que fatores genéticos determinam, por exemplo, o aparecimento de uma doença, ou fatores de risco para uma doença, ou, ainda, que alguém seja resistente a uma determinada doença. Isso tem impacto sobre a forma como diagnosticamos e tratamos esses males."

Entre os alunos da graduação, ela percebe um equilíbrio de gênero. "Mas, no Departamento de Estatística, dos 23 professores, só 4 são mulheres. É triste, porque vejo que parte das minhas alunas não se consideram capacitadas, se acham medianas", afirma. O preconceito também vem dos alunos homens, diz.

"Alguns acham que podem me confrontar de uma maneira muito mais incisiva do que fazem com professores homens, em busca de uma reavaliação de nota, por exemplo", diz Daiane, que afirma não se intimidar. "Depois de passar pelo mercado financeiro, aprendi a gritar para ser ouvida", brinca.

Mas ela não tem dúvidas de que a misoginia se expressa de maneira sutil. "Na troca de emails de um grupo de estudos, dei minha opinião. Um pesquisador, na sequência, falou praticamente o mesmo que eu. Um segundo pesquisador respondeu a ele, dizendo que concordava com a argumentação. Era como se eu não tivesse opinião."

Nem tudo, porém, está nas entrelinhas. Daiane recorda o caso de uma amiga professora que estava arrumando seus livros em uma sala da universidade, quando ouviu de um colega: "Olha, você também tem livros! Pensei que fosse só maquiagem."

Mulher grávida, de cabelos longos castanhos, usando vestido azul
Fernanda Matias, pesquisadora da Universidade Federal de Alagoas - Divulgação
FERNANDA SELINGARDI MATIAS, 35, DOUTORA EM FÍSICA
Das sete vencedoras da 17ª edição do prêmio Para Mulheres na Ciência, apenas a física Fernanda Selingardi Matias, 35 anos, não pode comparecer à premiação, no Rio, no final de novembro. O motivo: Caio nasceu em 20 de novembro, dez dias antes do evento. Foi o segundo filho da pernambucana, que hoje mora em Maceió (AL) e é pesquisadora da UFAL (Universidade Federal do Alagoas). O mais velho tem um ano e meio.

"Quis ter logo um atrás do outro, porque teria que pausar a carreira", diz. "Então, que fosse de uma única vez", diz ela, casada com um físico com quem começou a namorar ainda na faculdade. "Senti que era respeitada pelos colegas mais por ser namorada dele à época do que por ser uma mulher."

Fernanda lembra que mulheres são minoria nas turmas de física. "Eu entrei com outras três colegas e, ao final da graduação, éramos só eu e mais uma", diz ela, que era obrigada a buscar um banheiro feminino no térreo da universidade. "No andar da nossa sala, só tinha banheiro masculino."

Para ela, é importante que a universidade seja um espaço para discutir a diversidade. "É fundamental que as universitárias entendam que episódios de assédio moral ou sexual não são pessoais, acontecem com todas, e elas precisam contar com uma rede de apoio para não se intimidarem", diz Fernanda.

"Uma aluna que chega à universidade, vindo de uma família humilde, pode não ter coragem de denunciar um professor, por exemplo, mas nem por isso deve ficar sem apoio. Tem que contar com as próprias professoras", diz a física, que já foi questionada por um colega: "Você é feminista, mas não é feminazi, né?"

Entre o mestrado e o doutorado na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), ela fez um curso de neurociência computacional no Japão, doutorado em co-tutela com a Espanha. Na França, cursou o pós-doutorado em neurociência cognitiva. Desvendar a atividade cerebral foi tema do seu projeto, um dos vencedores do prêmio da L’Oréal.

"Usamos ferramentas da física, da matemática, da estatística e da computação para estudar o cérebro e o sistema nervoso", diz ela, uma especialista na física de sistemas complexos. "Isso nos ajuda a entender melhor como pensamos e aprendemos e, no futuro, pode auxiliar o diagnóstico e o tratamento de distúrbios do sono e outros problemas neurológicos."

A ideia de Fernanda é encontrar uma forma de automatizar a classificação dos diferentes estágios do sono, algo que hoje precisa ser feito por um médico. Ao tornar essa classificação mais rápida, seria possível monitorar, por exemplo, o estado de consciência de pacientes sob anestesia geral durante cirurgias.

Mulher de cabelos longos castanhos veste terno azul
A farmacêutica Gisely Cardoso de Melo, pesquisadora da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado - Divulgação
GISELY CARDOSO DE MELO, 41, DOUTORA EM MEDICINA TROPICAL
Gisely nunca foi uma "nerd". Na escola, gostava de química e biologia, o que a levou à graduação em farmácia-bioquímica, mas ela tinha outros interesses como adolescente. Na época, a mãe, Maria Augusta, percebeu que as distrações comuns da idade poderiam ser um risco ao futuro da filha e deu a sentença: estava proibida de namorar de segunda a sexta. Tudo para que ela se tornasse a primeira da família a ter um diploma universitário.

Formada pela UEM (Universidade Estadual de Maringá), ela não se animou em continuar no Sul do país, por conta da alta concorrência nos concursos públicos. "Queria muito trabalhar", diz Gisely, que prestou concurso para a Secretaria de Saúde de Manaus e passou. Cursou o mestrado e o doutorado na UEA (Universidade do Estado do Amazonas).

Vencedora do prêmio da L’Oréal na categoria Ciências da Vida, a pesquisadora da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado deseja que seu projeto ajude a população da região amazônica.

Seus estudos investigam duas hipóteses para a recorrência da malária causada pelo agente Plasmodium vivax. O primeiro deles é o polimorfismo, a variação do gene CYP2D6. O segundo é a não adesão dos pacientes ao tratamento médico de sete dias. Em muitos casos, o paciente volta a adoecer sem ter sido infectado.

O problema é que as recorrências da malária impactam não só a saúde do indivíduo, mas também a saúde pública, uma vez que dificultam o controle e a eliminação da doença e aumentam os gastos com atendimento em saúde.

A região mais afetada no Brasil é justamente a Amazônia, que concentra 99% dos casos de malária no país. Em 2020, a doença atingiu 241 milhões de pessoas, em especial no continente africano, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).

"Queremos conhecer e entender melhor a recorrência da malária pelo Plasmodium vivax, para elaborar estratégias para a eliminação da malária e para buscar novos tratamentos", diz Gisely, que deseja mostrar à comunidade científica ser possível desenvolver pesquisas de qualidade no Norte do Brasil.

Ela afirma já ter sido alvo de preconceito por conta da cor parda e de assédio sexual no meio acadêmico, até por parte de alunos. Casada e com uma filha de 8 anos, o que mais a incomodou até hoje, no entanto, foi a dificuldade em conciliar maternidade e trabalho.

"Depois que tive filha, fui excluída dos grupos de estudo", diz. "É realmente muito complicado conciliar vida pessoal e profissional, principalmente quando as crianças são pequenas, por conta de viagens e compromissos fora do horário de trabalho, é preciso ter uma rede de apoio bem estruturada", afirma. "Mas as pessoas têm que entender que, depois que você se torna mãe, você continua a mesma, com o mesmo potencial e conhecimentos."

 

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