Revolução de 1817 tem feriado "desvirtuado"

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6/3/23

“Nenhum outro movimento de rebeldia, revolucionário, no Brasil colonial, na América portuguesa, teve uma repressão tão violenta quanto o da Revolução Pernambucana. Há registros na época de que não houve uma família Pernambucana que não chorasse um morto, um preso durante a Revolução de 1817”. A frase é do historiador George Félix Cabral de Souza, que atua como coordenador científico da Coleção IAHGP, com abordagens que buscam resgatar a história do movimento e lançamento nesta segunda-feira, uma efeméride entende ser tratada erroneamente. "O termo 'data magna' precisa parar de ser usado. '6 de Março - Dia da Revolução Pernambucana de 1817', ensina, se colocando contra o desvirtuamento da razão do feriado.

O feriado foi instituído pela Lei Estadual 16.059-2017 (clique aqui para conhecer), estabelecendo indicativos para registrar a data da eclosão da Revolução Pernambucana de 1817. Para ser reconhecida como data cívica mais significativa de Pernambuco, conforme previsto na Lei Federal 9.093-1995, o 6 de Março foi definido como “data magna”. Para George Cabral, o uso desse termo desvirtua o propósito do feriado.

Resgatando a história
“Não sei exatamente por que razão - bom, a lei estadual reproduz o termo -, mas a imprensa colou nessa coisa de 'data magna' e isso gera confusão. Porque 'data magna' não diz nada no final das contas, é um termo genérico, e ainda se presta a criar equívocos”, avalia o historiador. O termo considerado errôneo acaba tendo mais atenção do que o resgate histórico da Revolução Pernambucana de 1817, algo pelo que se empenham a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) e o Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) em regime de parceria.

É o caso de quatro livros que retratam um período relevante da história de Pernambuco, estavam esgotados, e acabam de ser publicados, abrindo a “Coleção IAHGP”, com abordagens sobre o clero na revolução republicana de 1817, a escravidão no processo revolucionário e os principais personagens de revoltas nos séculos 18 e 19. A coleção chega às livrarias nesta segunda-feira que marca os 206 anos da Revolução Pernambucana, mas o lançamento será no dia 20, às 19h, na Academia Pernambucana de Letras (APL).

Coordenador científico e apresentador da "Coleção IAHGP", George Cabral conta que a coleção nasceu inspirada no contexto das comemorações pelo bicentenário da Revolução Pernambucana de 1817, mas a ideia é agregar novos títulos da história de Pernambuco, com a produção clássica, textos mais recentes e documentos históricos. “O lançamento destas quatro obras iniciais da Coleção IAHGP - 'O Brasil Heroico em 1817'; 'Os Mártires pernambucanos'; 'Os padres e a Teologia da Ilustração' e 'Liberdade: Rotinas e Rupturas do Escravismo no Recife'- representa uma importante colaboração da Cepe para os estudos históricos em nosso estado pois estão sendo disponibilizadas duas obras de grandes historiadores sobre um momento crucial de nossa história e também dois documentos históricos que subsidiarão novos trabalhos e novas interpretações sobre o nosso passado”, afirma.

Agendas e educação
Aprovada pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), mais que criar um feriado, a Lei Estadual 16.059-2017 estabeleceu ações que devem ser desenvolvidas para “registrar a data da eclosão da Revolução Pernambucana de 1817”, incluindo Reunião Solene na própria Alepe para entrega da Medalha do Mérito Democrático e Popular Frei Caneca, a inclusão no calendário letivo das escolas para “estudo dos fatos históricos relativos à Revolução Pernambucana”, e comemorações cívicas sob responsabilidade do Poder Público no dia 6 de março. É o caso do hasteamento solene da bandeira do Estado de Pernambuco no Palácio do Governo e a colocação de coroa de flores no monumento aos Revolucionários localizado na Praça da República.

A Lei Estadual 16.059-2017 também prevê realização de seminários, palestras, concursos públicos ou privados de natureza cultural entre outros eventos e a instituição da “Semana da História de Pernambuco”, com participação estudantil e popular nos eventos programados. Também professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o historiador George Cabral concedeu uma rápida entrevista na qual se posiciona sobre a necessidade de resgate de um importante momento histórico que destacou Pernambuco no cenário nacional:

A Revolução de 1817 sempre foi minimizada nas aulas de História, ocupando cerca de uma-duas páginas de livros didáticos. Sinteticamente, qual a verdadeira relevância histórica desse evento perante fatos semelhantes no cenário nacional?
George Cabral: A importância da Revolução Pernambucana de 1817 no contexto nacional se deve ao fato de que ela foi o primeiro movimento anticolonial que conseguiu tomar o poder. Nenhum outro movimento anticolonial até aquele momento tinha conseguido tomar o poder e estabelecer um Governo.

A bandeira de Pernambuco tem sua origem vinculada à Revolução de 1817, mas poucos sabem que teve três estrelas na idealização, indicando que o movimento alcançou outros estados. O visual adotado em 1917, com apenas uma estrela, e o tratamento como “Revolução Pernambucana” reduzem a dimensão e importância do fato?
George Cabral: A bandeira ficou apenas com uma estrela porque cada estrela representava uma província que se juntou à República de Pernambuco. Eu penso que o termo Revolução Pernambucana não diminui a sua dimensão. Ninguém, por exemplo, questiona o fato de se chamar a inconfidência de Minas de Inconfidência Mineira. Eu acho que é um indicativo do local onde ocorre e não diminui a sua dimensão. O que muitas vezes aparece em matérias de imprensa e mesmo em livros didáticos, o que é equivocado, é chamar a Revolução de “separatista”. Não é uma “revolução separatista”, é uma revolução constitucionalista e anticolonial. Eu acho que colocá-la como “separatista” -até o próprio perfil do Governo do Estado usou esse termo-, colocá-la como “separatista”, isso sim é que diminui a sua dimensão.

Em que pese todo o esforço do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) e da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) em resgatar os registros históricos da Revolução de 1817, parece persistir o desconhecimento. O que se pode fazer para reparar esse lapso, especialmente nos meios acadêmicos de didáticos em nível nacional?
George Cabral: De fato, ainda há muita gente que desconhece a Revolução Pernambucana de 1817 e que, agora, por causa do feriado, é que começa a procurar entender do que se trata. Eu acho que um primeiro passo fundamental nisso seria, de uma vez por todas, parar de se referir ao 06 de março como “data magna”. Data magna é um termo genérico da legislação federal, que determina que cada Estado deve escolher a sua data mais importante no seu calendário cívico, que seria a data magna desse estado, e transformá-la em feriado. Então, o feriado é “6 de Março”, é da “Revolução Pernambucano de 1817”. Ninguém na Bahia, por exemplo, cogita chamar o 2 de Julho, que é a Independência da Bahia, chamar de “data magna”. Em São Paulo, a Revolução Constitucionalista, o 9 de Julho, não é chamado “data magna”. Então, aqui, não sei exatamente por que razão -bom, a lei estadual reproduz o termo “data magna”- mas a imprensa “colou” nessa coisa de “data magna” e isso gera confusão. Porque “data magna” não diz nada no final das contas, é um termo genérico, e ainda se presta a criar equívocos. Tem muita gente que diz que é o “feriado da carta magna”. E até surgiu alguns anos atrás uma brincadeirinha de que era o “feriado da gata magra”. Isso foi até interessante porque chamou atenção. Mas o termo “data magna”, de uma vez por todas, precisa parar de ser usado. “6 de Março - Dia da Revolução Pernambucana de 1817”. Eu acho que esse é um passo fundamental inicial, e, claro, um trabalho muito forte nas escolas, no Ensino Básico, para reparar, para suprir a lacuna que os materiais didáticos, produzidos sobretudo no Sudeste, têm de não se referirem à Revolução Pernambucana com a importância dimensão e importância que ela tem. Então, nós temos que fazer um trabalho de educação mesmo, educação histórica a partir da base, para que as próximas gerações cheguem já sabendo do que se trata.

A Lei Estadual 16.059-2017, que criou a Data Magna de Pernambuco determinou a realização de “seminários, palestras, concursos públicos ou privados de natureza cultural, reverências históricas e culturais”, “a instituição da Semana da História de Pernambuco, com participação estudantil e popular nos eventos programados”. Como historiador, como avalia o conhecimento geral sobre a Revolução de 1817 desde então e o que pode melhorar esse cenário?
George Cabral: Sem dúvida, o cumprimento estrito da lei, com a realização dessas atividades complementares é essencial para que esse trabalho de educação histórica a que me referia na (resposta à) pergunta anterior, ele possa se concretizar. Nesse sentido, algumas instituições, como o Instituto Arqueológico (Histórico e Geográfico Pernambucano), o Grande Oriente do Brasil, a maçonaria, os institutos históricos municipais, eles têm feito um esforço para levar para o público essa mensagem, essa história tão importante do pioneirismo de Pernambuco no processo de independência. A Companhia Editora de Pernambuco também tem feito um trabalho muito bom, tanto na produção de material impresso, de livros, como na produção de audiovisual, e na promoção de eventos, sobretudo as feiras de livros em cidades do Interior. Então, é algo que tem que ser, de fato, incrementado, tem que ser potencializado, e eu penso que os principais canais para isso seriam as escolas públicas e privadas, os institutos históricos e outras associações culturais, academias de letras, que possam servir como canal para a gente capilarizar em todo o Estado essa mensagem.

Afora as mortes, pouco se conhece das punições impostas a Pernambuco, diferentemente de outros casos, inclusive a Inconfidência Mineira, debelada antes mesmo que ocorresse. Se considerando ser difícil prever o alcance do sucesso da Revolução de 1817, o que seria Pernambuco hoje sem as punições impostas ao estado, como desmembramento de território?
George Cabral: Olha, nenhum outro movimento de rebeldia, revolucionário, no Brasil colonial, na América portuguesa, teve uma repressão tão violenta quanto o da Revolução Pernambucana. Eu acho que somente o Quilombo dos Palmares teve uma repressão mais violenta do que a Revolução Pernambucana. São dezenas de executados em praça pública por fuzilamento ou por enforcamento. São centenas de presos que ficaram em Salvador durante quase quatro anos. Só foram libertados quando houve uma revolução em Portugal, a Revolução do Porto, que impôs uma ordem constitucional. E também o desmembramento de território, primeiro em 1817, com a retirada da comarca de Alagoas, e depois em 1824, na Confederação do Equador, com a retirada da comarca do São Francisco. Com essas duas perdas territoriais, Pernambuco ficou reduzida a menos da metade do seu território original e sem dúvida representa uma perda muito grande. A longo prazo isso tem um impacto na nossa economia, na nossa demografia. E, claro, foram medidas repressivas que nunca foram desfeitas. Até a Constituição de 1988 ainda se discutia sobre a Comarca de São Francisco, e, no final, no texto final, a comarca continuou ligada à Bahia, e, como uma espécie de compensação, (foi restabelecida) a gestão de Fernando de Noronha, que sempre foi de Pernambuco. Sempre houve essa vinculação e a partir de 1700, da década de 1730, ficou oficialmente vinculado a gestão de Fernando de Noronha ao Governo de Pernambuco, ainda no período colonial. (A gestão de Fernando de Noronha) saiu do domínio de Pernambuco quando da Segunda Guerra Mundial, foi preciso estabelecer ali um território federalizado de segurança, mas desde o início da ocupação de Fernando de Noronha, sempre esteve ligada a Pernambuco, e a Constituição de 88 devolveu a gestão da ilha a Pernambuco. Essas condições territoriais também de fato precisam ser relembradas, além das perdas humanas, e de todo o trauma. Há registros na época de que não houve uma família Pernambucana que não chorasse um morto, um preso durante a Revolução de 1817. Além disso, a perda territorial que representa mais da metade do território pernambucano e que, sem dúvida, faz muita falta para o estado em termos territoriais e demográficos.

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