Joias raras do destino |
27/08/2023 Como se estivesse perscrutando o relógio, numa cenografia da espera, os ponteiros marcaram, enfim, 9 horas. É então que meu telefone toca. Antes das 9, apenas os amigos muito íntimos e situações peculiares justificam o uso desse aparelho em Portugal. Levantei o auscultador e escutei uma voz bem articulada, com timbre distinto e sotaque luso: "Estou sim! É a professora X? " Respondo afirmativamente. "Estou ligando a pedido do professor brasileiro Y". Encontrei-o num Congresso em Munique. Titubeio. "Pelo vosso silêncio, estou a perceber que não está a saber de quem se trata. De todo modo, vou deixar consigo a mensagem que ele vos enviou: Y chegará amanhã e ficará dois dias em Portugal.". Logo me indago: quem é esse homem que fragmenta as minhas reflexões assanhando o meu acordar? Quem é aquele outro estranho, brasileiro, que decreta que me busquem de forma discricionária? Num pano rápido, encerrei a conversa:: eu estaria no aeroporto na hora marcada. Ele rebate: "Irei ao vosso encontro com a minha esposa". Por curiosidade, indaguei: de que maneira eu seria reconhecida pelo casal? Deduzi o sorriso dissimulado. Recordei a história de "O anjo do estranho" de Edgar Allan Poe, embora não existisse qualquer perplexidade ou hesitação em mim.
Conheci, a partir daquele dia, a elite de Lisboa: nobres, intelectuais, embaixadores... A revista "Ola" sempre disponibilizava duas ou três páginas para as fotos e comentários desses encontros. Certa vez escutei do anfitrião uma observação intrusa: Eu tenho sempre o cuidado de pedir aos jornalistas que não publiquem as suas fotos. Indaguei a razão e percebi a estatura do preconceito: Você é casada e não está acompanhada do seu marido. Afinal, haviam criado uma blindagem que atendia aos meus propósitos: não gostar de aparecer, embora fosse avessa ao politicamente correto. Graças a esses encontros, fiz grande amizade com a embaixatriz russa (na realidade, uma ucraniana) e o marido. Num voo fretado pelo casal, conduzindo a fina flor de Portugal, conheci a Rússia que os turistas ignoram. Dessa viagem restam, além das lembranças, um quadro a óleo de uma pintora famosa, um tapete gasto e algumas fotos. Guardo também os retratos da coleção de carros antigos - hobby do casal amigo.
Dayse de Vasconcelos Mayer , constitucionalista e cientista política
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