Maior parte dos acordos para evitar prisão termina em multas, diz CNJ

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14/09/2023

Pesquisa inédita do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aponta que a maior parte dos acordos de não persecução penal, criados no Brasil pelo pacote anticrime, de 2019, termina com a aplicação de multas, chamadas oficialmente de prestações pecuniárias. Mas em um terço dos processos analisados não há cumprimento imediato da medida imposta e, em um quinto deles, o cumprimento é parcial.

O levantamento, obtido com exclusividade pela Folha, também aponta que em 42,4% dos casos os acordos foram usados para crimes que já não levariam o réu à prisão. Os mais frequentes são os contra o Código de Trânsito (23,68%) e o Estatuto do Desarmamento (18,71%).

Esse dispositivo permite, no caso de crimes com pena mínima inferior a quatro anos e sem violência, que um réu primário confesse e não seja preso. A oferta é feita pelo Ministério Público, e o signatário recebe uma medida alternativa, como multa ou prestação de serviços comunitários.

foto mostra presos ao fundo, depois de grades, tomando sol
Presos tomam banho de sol em unidade de Itaitinga (CE) - Divulgação - 16.out.18/Defensoria Pública do Ceará
A pesquisa, que será apresentada nesta sexta (15) em Brasília, foi produzida pelo CNJ em parceria com a UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), a Secretaria Nacional de Políticas Penais e o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

Foram analisados 946 processos em um universo de 1.295 acordos, da Justiça Federal e das estaduais, no período de janeiro a junho de 2021, das cinco regiões do Brasil. O estudo também coletou impressões de integrantes do Judiciário e do Ministério Público sobre as alternativas penais e as regras para aplicação do acordo.

O uso do dispositivo se tornou mais frequente no país, mas ainda é limitado a casos em que já havia negociação de penas alternativas, segundo Luís Lanfredi, juiz auxiliar da presidência do CNJ e coordenador do Departamento de Monitoração e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF). "Agora, encontramos outros desafios, como a necessidade de uniformização de procedimentos e a garantia de que os acordos sejam uma alternativa penal efetiva, diversa do encarceramento."

A pesquisa aponta a falta formação para juízes sobre o acordo e as lacunas deixadas pelo pacote anticrime, como o local de negociação, que acontece hoje na sede de Ministérios Públicos e varas ciminais, e a forma, com acordos orais ou por email.

A prestação pecuniária lidera a lista, representando 37,1% dos 946 casos analisados, com acréscimo de 7,61% dos processos se considerada a prestação aplicada junto com outras medidas. Em seguida estão a prestação de serviço comunitário (29,18%) e a renúncia voluntária a bens e direitos propiciados pelo crime (10,78%).

A prestação de serviços levanta debates por exigir o acompanhamento por equipes multidisciplinares, formadas geralmente por psicólogos e assistentes sociais, que verificam o cumprimento da medida. A falta dessas equipes foi apontada em 38,5% das respostas de integrantes das Justiças estaduais e em 83,9% da Justiça Federal.

Segundo o estudo, é possível que o déficit mais baixo em instâncias estaduais se deva a uma demanda consolidada pela maior frequência de réus em situação socioeconômica vulnerável.

A renda baixa se reflete no sistema carcerário brasileiro. Dados compilados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que, de 125,5 mil pessoas presas com informação sobre renda, apenas 7,1% recebem de um a dois salários mínimos. Os que recebem mais de dois salários são 0,05%.

Segundo a juíza federal Carolina Malta, que atua na Seção Judiciária de Pernambuco, muitas vezes a alternativa da prestação pecuniária é feita sem análise da capacidade de o réu cumprir o pagamento, uma das distorções que ela vê no dispositivo.

"É um contrato de adesão, com cláusulas pré-estabelecidas, sem a possibilidade de o acusado discutir as prestações. Se a pessoa não tem possibilidade de pagar, fica numa situação de aceitar, mesmo sem a condição de pagar, ou seguir com o processo penal."

Já o procurador da República Aldo Costa, vê na medida uma forma de preservar a culpa e reprimir crimes.

"Apresenta a vantagem de ser adaptável de acordo com a gravidade do crime, suas consequências e a capacidade financeira dos envolvidos."

Ele desenvolveu um cálculo para as multas que virou um modelo e foi usado no acordo de R$ 189 mil firmado pelo ex-ministro Onyx Lorenzoni, homologado em 2021 pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que confessou ter recebido caixa dois de campanha da JBS em 2012 e 2014.

O destino e o uso desses valores também não é padronizado. Segundo a pesquisa, eles poderiam ser destinados ao Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), uma alternativa criticada pelo procurador. "Porque, frequentemente, os valores destinados ao Funpen ficam sujeitos a contingenciamentos, o que pode atrasar a alocação de recursos."

O Código de Processo Penal, explica Costa, estabelece uma ordem de prioridade para os recursos. "Em primeiro, para entidades públicas ou de interesse social. A preferência é dada a entidades com a função de proteger bens jurídicos similares aos que foram aparentemente lesados pelo delito em questão."

Costa também defende a publicidade dos valores arrecadados para dar mais credibilidade ao sistema. "Possibilita um controle externo mais eficaz das negociações", afirma. "Quando a sociedade tem acesso aos valores aplicados em acordos anteriores, espera-se que os órgãos de justiça sigam padrões semelhantes ao analisar casos comparáveis."

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