26/09/2017
A recente polêmica nacional em torno da liberação pela Justiça da terapia de reversão sexual para homoafetivos acendeu um sinal vermelho na luta da comunidade transexual no Brasil. O grupo ainda busca sair do rol de doenças mentais internacional, que denomina a condição como transtorno de personalidade e comportamento e, dessa forma, passível de tratamento.
Assim como a orientação sexual, a identidade de gênero no País, continuamente sofre um estigma social difícil. A população trans teme que, se a pauta de gays, lébicas e bissexuais - que deixaram de ser considerados doentes pela Organização Mundial de Saúde há quase 30 anos - sofreu retrocessos de direitos agora, a bandeira pelo fim da classificação deles como doentes pode se arrastar ainda mais, replicando preconceito e violência.
“No início, a patologização (transformação em doença) dos trans trouxe benefícios para termos acesso às cirurgias e tratamentos hormonais, mas isso mudou. Pode e deve ser criado um CID (Código Internacional de Doença) de cuidado, onde poderíamos ter os amparos necessários e cirúrgicos, mas sem sermos taxados de doentes. É preciso que as pessoas entendam que não somos doentes e que, quando decidimos por uma cirurgia, não buscamos uma mutilação”, afirmou o coordenador da Associação de Homens Trans & Transmasculinidades (AHTM), Társio Benício.
Ele lamentou os acontecimentos da última semana, quando o juiz do Distrito Federal Waldermar de Carvalho concedeu liminar autorizando psicólogos a realizar a chamada “cura gay”, o que contraria a Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que veta a prática. “Já vivemos com esse peso, brigando pela despatologização das identidades trans e, de repente, vem esse retrocesso na pauta da orientação sexual. Só posso pensar que esse juiz quer ir contra o mundo científico”, lamentou.
O CFP, em nota técnica sobre processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans explicita que “ a transexualidade e a travestilidade não constituem condição psicopatológica, ainda que não reproduzam a concepção normativa de que deve haver uma coerência entre sexo biológico/gênero/desejo sexual”. A instituição começou em 2014 um movimento pelo fim da transexualidade entre as doenças mentais.
“A despatologização compreende que as vivencias humanas não necessariamente são patológicas. Não é apenas porque uma pessoa não apresenta uma simetria sexo e gênero, por serem diferentes de uma normativa histórica e culturalmente colocada que são doentes. O ser humano é para além de suas questões biológicas. E lidar com saúde significa lidar com vários outros elementos que digam respeito ao bem estar e não só a conformidade física”, apontou a psicóloga do Espaço Trans do Hospital das Clínicas (HC) da UFPE, Suzana Livadias.
O psicólogo Spencer Júnior concorda com a despatologização e aponta que, nos Estados Unidos, a classificação de transtorno psiquiátrico já caducou e deu lugar ao cuidado. “A pessoa trans não é doente. Mas pode apresentar comorbidades, ou seja, associação de patologias psiquiátricas, como depressão e ansiedade, muitas vezes desencadeadas pelo fato dessas pessoas sofrerem muito”, pontuou. O quesito sofrimento é recorrente no serviço do HC nas pessoas que buscam adequação de identidade de gênero.
“A recusa do social é que causa o maior sofrimento das pessoas. Recebemos muitas pessoas que sofreram ou sofrem violência doméstica, que a família mandou embora de casa, que perdeu vínculos familiares em função de uma não aceitação de sua condição identitária ou que evadiu-se da escola por bulying ou transfobias, além de não encontrar vaga no mercado de trabalho”, narrou Suzana. O Espaço Trans irá completar três anos de credenciamento ao SUS no próximo mês. Atualmente, atende cerca de 280 pacientes. Desses, 191 são mulheres trans e travestis, das quais cerca de 15 estão aptas a fazer a cirurgia de redesignação sexual, após um acompanhamento por dois anos no serviço. Os outros 89 são homens trans.
A expectativa da representante do CFP, Sandra Spósito, é que na edição 2018 do CID, a transexualidade seja retirada ou recategorizada para linha de cuidados. “A compreensão sobre não ser doença é científico. Construída a partir da interlocução de diversos saberes da antropologia, sociologia, psiquiatria, medicina, onde se entende que o pertencimento a um gênero é condição humana que é diversificada e deve ser respeitada”.
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