08/04/2017
Jomard Muniz de Britto é uma figura, ao mesmo tempo, conhecida e desconhecida. Quem circula pelas ruas do Centro do Recife à tarde tem boas chances de ter cruzado com ele, adepto de longas caminhadas da sua casa, na Soledade, até o Bairro do Recife. Não raro, também é visto à noite pela região central da cidade em redutos da boemia recifense, como o Pátio de Santa Cruz, onde é reconhecido por garçons de bares e clientes. O fato de ser identificado não significa, necessariamente, familiaridade com ele e sua obra, que abrange cinema, literatura, filosofia e música. Celebrando 80 anos neste sábado, o personagem ganha a oportunidade de ser reapresentado ao público, com biografia a ser lançada na data do aniversário, em evento no Museu do Homem do Nordeste (Avenida Dezessete de Agosto, 2187, Casa Forte).
"É um grande paradoxo, eu, que sempre fui crítico de Gilberto Freyre, vou ser homenageado lá, gilbertianamente|, diz Jomard sobre a solenidade ser realizada no museu idealizado pelo sociólogo pernambucano. "Mas, a essa altura da vida, não se tem mais discussão com ninguém, tudo é divino e maravilhoso", afirma, sinalizando indisposição para polêmicas como as que permearam a carreira no período mais prolífico, entre os anos 1960 e 1970, quando integrou a equipe do educador Paulo Freire e dava os primeiros passos como agitador cultural no estado, função que desempenha até hoje.
Novo título da coleção Memória, da Companhia Editoria de Pernambuco, Jomard Muniz de Britto: Professor em transe foi escrito pela jornalista Fabiana Moraes e pelo historiador Aristides Oliveira, este último, autor também de livro sobre O palhaço degolado (1977), o mais conhecido filme de Jomard. Antes do lançamento e da sessão de autógrafos, o Cinema do Museu exibe, às 16h, JMB, o famigerado, documentário de Luci Alcântra lançado originalmente em 2011.
A lembrança, em registro literário e audiovisual, parece apropriada, já que são dois campos explorados amplamente por Jomard Muniz de Britto - ou JMB, como alguns sintetizam. É uma das poucas sínteses aplicadas a ele, que transita por áreas diversas, da filosofia à música, em Pernambuco e fora dele. "Gosto de dialogar com pessoas que conduzem cultura, sem nenhuma pretensão de unificação. Uma coisa que defendo muito são as diferenças", diz, sobre a riqueza do intercâmbio entre diferentes meios e ambientes.
Ele afirma dedicar a maior parte do tempo à leitura. "Minha ocupação é ser leitor. Não sou professor, não sou escritor, eu sou leitor". Ritualístico, inicia a atividade logo cedo, após conferir os noticiários televisivos e tomar o café da manhã, geralmente frutas, sucos e biscoitinhos diet. A escrita não foi deixada de lado, mas é mais espaçada ou dedicada a correspondências para amigos e anotações sobre as leituras. Escreve mensalmente seus atentados poéticos, como chama os textos curtos, misto entre ensaio e literatura, que costuma elaborar e distribuir pelas ruas. Influenciado pelos pensadores pré-socráticos, que viam proximidade entre filosofia e poesia, condensa ideias e pensamentos entre versos que costumam preencher as páginas. "É um papel de combate cultural, é uma forma de fazer uma crítica socializada, não socialista, socializar uma postura crítica", afirma.
Sem aptidão para computadores, ele produz o material datilografado na máquina de escrever e conta com o suporte de amigos que se encarregam de transcrever o conteúdo para impressão e reprodução das mil cópias do panfleto, distribuídas por ele mesmo em suas andanças pelo centro da cidade. Todos os custos de produção são bancados por ele, que faz questão de manter-se independente e tem ressalvas quanto a patrocínios e apoios. "A arte perde não só a essência, perde a existência", opina. "Tudo que eu fiz foi com meu salário. Nada dependeu de fundos ou de afundações", diz. "Todo mundo é muito sacana, muito oportunista. O pessoal fala mal do governo, mas quer fundos de cultura".
Jomard mantém-se ativo e presente na cena cultural, mas em ritmo menos acelerado. Tranquilo e manso na voz, demonstra serenidade que diz existir antes mesmo de vir ao mundo. "Eu passei sete anos para nascer", comenta, afirmando que a mãe, a pernambucana Maria Celeste Amorim, só conseguiu engravidar após um longo período de tentativas com o marido. Primogênito, é também o único vivo entre os cinco irmãos da família. Nascido no bairro de São José, mantém até hoje as raízes na área central da capital. “Eu sou feliz com o Recife”, diz ele, que tem boa parte da obra bastante associada à cidade.
O soco quase dado por Ariano
Ex-aluno de estética de Ariano Suassuna, Jomard chegou a trocar farpas com o escritor por conta de divergências de pensamento. Enquanto o filósofo condenava o verniz erudito aplicado às raízes culturais através do Movimento Armorial, o autor paraibano se opunha ao tropicalismo, alegando ser uma "americanização". As discordâncias acabaram tomando outras proporções em 1968, quando Jomard endossou as críticas do jornalista Celso Marconi a respeito da escolha do cineasta húngaro George Jonas para dirigir A compadecida, primeiro filme baseado em O auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.
Ambos objetaram a escolha do diretor, que alegavam não ser familiarizado com a cultura local. A polêmica virou discussão entre os três em artigos publicados em jornais e acabou se transformando em agressão física: ao encontrar Celso Marconi assistindo a uma peça no Teatro Popular do Nordeste, Ariano desferiu um soco nele. "Esse outro é para Jomard", teria dito Ariano ao tentar desferir um segundo murro.
O perdão veio apenas nos anos 1980, quando Jomard voltou a lecionar na Universidade Federal de Pernambuco, onde Ariano também dava aulas. "Ele me chamou para uma salinha que estava livre e, eu que sou muito covarde, pensei: 'será que ele vai fazer algum susto?'", rememora. Mas era apenas uma conversa para pedir desculpas. E, importante dizer, JMB acabou achando o filme bom.
A perseguição pela ditadura
A docência em instituições de ensino superior ocupou significativa parte da carreira de Jomard e impactou decisivamente em alguns rumos da sua vida, incluindo a perseguição pelo regime militar, por conta da proximidade com o educador Paulo Freire, que o convidou para integrar a equipe do Serviço de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Em maio de 1964, pouco tempo após o golpe, o grupo tinha ouvido rumores que estava na mira dos militares e as prisões aconteceriam em breve. "Eu ia dar aula e já deixava avisado em casa que, se não voltasse até a hora do almoço, era porque me pegaram", relembra. E, de fato, ocorreu: Jomard foi encaminhado para o Forte das Cinco Pontas, onde dividiu cela com o político Gregório Bezerra por cerca de 20 dias. Professor em disciplinas como introdução à filosofia, teoria do conhecimento e estética, Britto se aposentou precocemente da UFPE em 1964. Nesse período, ainda dava aulas e palestras em cidades próximas, como Campina Grande e João Pessoa.
A segunda investida contra ele não tardou muito: por ordem do comandante da região militar, foi legalmente impedido, a partir de 1969, de lecionar na Universidade Federal da Paraíba. A anistia veio dez anos depois do AI-5, quando foi reintegrado às duas instituições de ensino.
Glauber Rocha e o tropicalismo
Cinéfilo, JMB discutia bastante sobre a sétima arte nas salas de aula e foi influenciado por Glauber Rocha. Em uma de suas passagens pelo Recife, o cineasta baiano acabou conhecendo Jomard, com quem sentiu grande afinidade de pensamentos. No início dos anos 1960, o diretor convidou o recifense para uma temporada em Salvador, ocasião em que ficou hospedado na pensão da mãe dele, Lúcia Rocha.
Jomard credita a Glauber o despertar do interesse como realizador cultural e manteve com ele uma relação de amizade em troca de cartas por muitos anos. Ele conta que uma das experiências mais marcantes após sair da prisão, em 1964, foi justamente ver Deus e o diabo na terra do sol, à época recém-lançado. Outros artistas baianos também impactados por JMB foram Caetano Veloso e Gilberto Gil. Como um dos precursores do tropicalismo em Pernambuco, junto ao amigo Celso Marconi, Jomard acabou definindo algumas das bases do movimento, com a publicação do primeiro manifesto tropicalista, assinado também pelo músico Aristides Guimarães e publicado em 20 de abril de 1968.
O palhaço degolado e o cinema super-8
O gosto pelo cinema também direcionou a carreira de Jomard Muniz de Brito como realizador, mais especificamente como diretor de super-8, sobretudo entre os anos 1970 e 1980. A mais conhecida produção, O palhaço degolado, produzido entre 1976 e 1977, foi analisado em trabalho de mestrado do historiador piauiense Aristides Oliveira.
No curta-metragem de 13 minutos, Jomard, caracterizado de palhaço, transita pela antiga Casa de Detenção (atual Casa da Cultura, no bairro de Santo Antônio) e faz um monólogo cheio de provocações a mestres da cultura nordestina - em especial à obra do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre e a Ariano Suassuna.
"O filme seria a exteriorização de uma angústia atravessada pelo sentimento de incompletude e cerceamento das práticas culturais vivenciadas por Jomard Muniz de Britto", descreve Aristides Oliveira. "Uma tensão que se transforma em riso ácido, tomando a atmosfera nômade circense como recurso de expressão da incerteza pós-64", acrescenta. O curta-metragem ganhou prêmios como Melhor Filme sobre o Homem e o Nordeste, no Festival de Cinema Super 8, além de ter sido exibido no Festival Nacional do Filme Super-8 e na Mostra Marginália 70, em São Paulo.
Entrevista - Jomard Muniz de Britto
Qual a melhor maneira de lhe definir? Acho que é melhor usar as indefinições. O filósofo francês Edgar Morin (que se opõe a ideias de simplificação e reducionismo) fala da teoria da complexidade. Então, eu, aqui, sou um idiota da complexidade. Um famigerado da complexidade.
Mas tem preferência entre as diferentes alcunhas, cineasta, escritor, filósofo? Eu sou um pop-filósofo.
Se considera vaidoso? Os melhores artistas cultivam a personalidade deles. Um exemplo, não estou falando bem nem mal, é o nosso querido Raimundo Carrero, que gosto muito como escritor e pessoa. Ele criou o centro cultural Raimundo Carrero. Isso não é uma beleza? Eu jamais criaria nem uma bodega cultural Jomard Muniz de Brito. Isso para mostrar opções existenciais. Sou um existencialoide, um existencialista idiotizado.
Se sente bem no papel de "idiota"? Não me faz mal. Não sei se vivo praticando isso sempre. Em uma entrevista, quero assumir esse papel. Isso é teatro. Mas é um idiota da responsabilidade.
O Jomard fora das entrevistas é muito diferente? Não sei. Mas quando dou entrevista, não estou preocupado em ser um intelectual que fale coisas inteligentes. Idiota ou não, quando o cara é objeto de uma entrevista, ele fica vaidoso.
Incomoda envelhecer? Não. Eu sou tão ridículo que achava que não poderia passar dos 40 anos, porque depois dessa idade a pessoa ficaria careta demais. Olha só como eu era idiota, mais do que sou hoje. O pessoal de 40 ou 50 anos que eu conhecia era muito caretoide demais e eu achei que ficaria daquele jeito. Era um delírio.
Então, você é menos careta hoje? Não, eu sou careta ainda. Eu não fumo, só tomo uísque, nunca entrei em uma trip. Mas gosto de beber. Sou muito contraditório. Uma bebida tão popular quanto a cerveja e a outra, mais erudita, o vinho, eu não tomo, porque me dão sono. Aí eu comecei a tomar uísque, vodca. No tempo do tropicalismo, era rum com coca. Mas isso não precisa estar na minha biografia mundana.
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