Com 80%, armas de fogo lideram estatísticas de homicídios e põem em xeque segurança em PE

Imprimir

26/09/2017

 

Agosto de 2017 teve o maior número de assassinatos em Pernambuco na comparação com o mesmo mês dos últimos dez anos. Dados oficiais da Secretaria de Defesa Social (SDS) mostram a ocorrência de 413 homicídios no mês, ou uma média diária de 13,3 assassinatos. O G1 fez um levantamento de todos as mortes violentas ocorridas entre os dias 21 e 27. A partir disso, é possível mostrar um padrão dessa violência.

Em sete dias, aconteceram 106 casos, dos quais 85, ou 80,1% do total, tiveram registro de uso de arma de fogo. Homens pardos ou negros, moradores da capital e da Região Metropolitana do Recife representam a maioria dessas vítimas.

O levantamento também aponta as dificuldades enfrentadas pelo "Pacto Pela Vida", política pública lançada em 2007 para cumprir uma meta de redução de 12% das mortes a cada ano. Em agosto de 2017, mês da mais recente divulgação de estatísticas, foram 51 a mais que os 362 assassinatos notificados no mesmo período de 2016.

Com o número atualizado, Pernambuco somou, de janeiro até agosto de 2017, 3.375 assassinatos. No site da SDS, os dados mais antigos sobre homicídios são referentes ao ano de 2007, quando foram registrados 374 homicídios no estado em agosto. Em 2011, foram 272 assassinatos no mesmo mês. Depois de uma queda observada até 2013, a estatística apresentou crescimento a cada ano, reforçando a ideia de falência do Pacto.

O trabalho realizado em Pernambuco integra um levantamento do G1, que buscou registrar, no período, todas as mortes violentas ocorridas no Brasil. A iniciativa, denominada "Monitor da Violência", é o ponto de partida de uma parceria do portal com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Além de contabilizar os dados e publicar reportagens, o plano prevê o acompanhamento desses e de outros casos de violência no país.

Dos assassinatos notificados na semana entre 21 e 27 de agosto de 2017 em Pernambuco, 20 ocorreram no Recife e 33 na Região Metropolitana, composta por mais 13 cidades. No interior, foram 34 assassinatos na Zona da Mata e Agreste, além de 16 no Sertão.

Das 106 vítimas, foram 95 homens, sete mulheres e outras quatro pessoas não tiveram o sexo identificado. Ao todo, dez crimes envolveram o uso de facas ou outros instrumentos. Os demais tiveram o registro armas de fogo, sobretudo, revólveres calibre 38.

Entre os dias 21 e 27 de agosto, a reportagem foi além do registro de números. Conversou com parentes de vítimas e conheceu um pouco da história de pessoas assassinadas. Os casos de Romário da Silva, de 23 anos, e de Cidval de Souza Arantes, de 28 anos, se enquadram no perfil da criminalidade pernambucana.

Romário foi morto no dia 23 de agosto, no Morro da Conceição, na Zona Norte do Recife. Negro, levou vários tiros de arma de fogo, em um crime com características de execução. O assassinato aconteceu 15 dias depois de ele deixar uma unidade prisional, de acordo com os parentes.

Cidval, de etnia não esclarecida, foi encontrado morto com marcas de tiros. O caso aconteceu no dia 21 de agosto, na zona rural de Jurema, no Agreste pernambucano, distante 193 quilômetros do Recife.

Entre os casos de mulheres assassinadas, chama a atenção o de Camila Maria de Moura, jovem de 17 anos morta a facadas pelo ex-companheiro da irmã, em São Lourenço da Mata, no Grande Recife. Grávida, a vítima tentava evitar que o adolescente, de 15 anos, ferisse a sua parente, que tinha acabado, dias antes, o relacionamento amoroso.

Rotina

Para a polícia de Pernambuco, o perfil traçado a partir do levantamento feito em uma semana confirma o dia a dia dos delegados e agentes que atuam nas unidades especializadas em investigação de homicídios. No entendimento do gestor do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), Ivaldo Pereira, o grande percentual de execuções mostra a rotina de violência que envolve o tráfico de drogas e o comércio ilegal de entorpecentes.

“Se somarmos as mortes diretamente ligadas ao tráfico e os acertos de contas entre traficantes, teremos de 60% a 70% dos homicídios registrados em Pernambuco” , afirma Ivaldo Pereira

Segundo ele, os números recentes da violência também têm relação estreita com os problemas econômicos. “A crise nacional tem papel determinante na violência em todo o país. E, em Pernambuco, não é diferente. Tenho conhecimento de crimes que envolveram pessoas que saíram de empregos formais e investiram dinheiro no tráfico”, observa.

Para Pereira, outro fator deve ser levado em conta: a mortalidade envolvendo ex-presidiários ou jovens que deixaram as unidades de ressocialização de adolescentes infratores. “Acredito que até 70% das vítimas de homicídios tiveram passagem pelo sistema penitenciário ou por abrigos para menores”, afirma.

Segundo o coordenador do Núcleo de Políticas de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e um dos criadores do Pacto pela Vida, José Luiz Ratton, é preciso analisar fatores importantes para entender o perfil da violência em Pernambuco. Para ele, o estado não atua de forma incisiva e não prioriza a prevenção da violência quando o tema é o egresso do sistema penitenciário e das unidades de adolescentes infratores.

“O cidadão que passa seis ou sete anos na cadeia volta para a comunidade. Ele vai terminar matando ou morrendo. É preciso trabalhar com esse público para ter uma redução efetiva dos números de assassinatos. O estado nunca priorizou as ações de prevenção, como a mediação de conflitos nas comunidades mais vulneráveis”, declara.

Ratton aponta o problema na prática repressiva e alega ser preciso avaliar a relação entre o tráfico de drogas e a ação das forças policiais. “O governo criou uma gratificação para o combate ao homicídio. Mas instituiu também um bônus para apreensão de drogas. Apreender entorpecentes realimenta a violência, pois quem fica sem a droga e vira devedor vai ter que conseguir dinheiro para pagar o fornecedor. Há, ainda, o vácuo deixado por lideranças quando ocorrem mortes ligadas ao tráfico e isso provoca disputas por mercado”, analisa.

Desmonte do Pacto

Além de participar da criação do Pacto pela Vida e ajudar a implantá-lo, José Luiz Ratton fez avaliações periódicas do programa. Ao relembrar os primórdios da ideia, em janeiro de 2007, e a situação atual, uma década depois, ele acredita em desmonte gradual e paulatino da política pública. “Houve uma sabotagem silenciosa do Pacto”, avalia.

Para justificar essa avaliação, o professor do departamento de sociologia da UFPE aponta alguns fatores. Entre eles estão a incapacidade de os gestores estaduais aumentarem o investimento real na segurança, quando necessário. “É preciso estabelecer prioridade prática e não apenas retórica. Não é só uma questão policial”, alerta.

Para o especialista em segurança pública, é necessário investir em capacitação, formação, tecnologia e, principalmente, na prevenção. Ele cita um problema ocorrido, ao longo dos últimos anos, no aparato de investigação dos homicídios.

Segundo Ratton, houve um desmonte da estrutura do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Nos melhores momentos do Pacto, entre 2010 e 2013, quando foi possível bater a meta de redução de 12% dos assassinatos, Pernambuco conseguiu bons índices de elucidação dos crimes.

”Todos os homicídios passaram a ser investigados. O índice de resolução aumentou de 5% a 7% e chegou a mais de 50%”, diz o professor José Luiz Ratton

O professor diz que nos últimos anos a realidade mudou. “O DHPP tinha 21 delegados com competência para investigar homicídios. Havia equipes especializadas em Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs) e agora não existe mais. Assim as organizações criminosas foram se reorganizando”, observa.

Esse déficit estrutural do departamento é reconhecido pelo gestor do estado. Ivaldo Pereira informa que o DHPP tem cinco delegacias nas áreas estratégicas. No auge do Pacto pela Vida, cada delegado tinha três adjuntos. Agora, existe apenas um delegado com duas a três equipes por delegacia. "Tinha uma equipe. Teve enxugamento”, atesta.

Na época em que as delegacias operavam com mais de um delegado, informa Pereira, a efetividade atingiu bons índices. “O número de inquéritos instaurados era quase o mesmo de documentos enviados ao Judiciário. Hoje, estamos priorizando, desde março, os casos de 2017. O índice de resolução está em 40% no estado e 34% no Recife”, afirma.

Outra questão prática apontada por José Luiz Ratton diz respeito à presença física da Polícia Militar nas comunidades de maior vulnerabilidade social. “É importante para sinalizar nas comunidades onde há grupos armados que mortes não serão toleradas”, reforça.

Para o especialista, ao longo dos anos, houve um problema de perda da capacidade de negociar com as categorias de agentes de segurança pública, bem como de reconhecer parte da legitimidade dos pleitos.

“Setores expressivos dos praças estão em greve. A PM trabalha de forma desmotivada. Há problema de comando e frouxidão de mecanismos de controle e, com isso, há a retomada de conexões de bandidos e policiais envolvidos em atitude ilícitas”, comenta.

Para Ratton, houve perda de governança. "Além disso, ambições da coalização dominante tiveram papel importante nesse processo". Essa é uma referência ao período em que o ex-governador Eduardo Campos (PSB) liderou a elaboração do Pacto, logo no início da primeira gestão no governo de Pernambuco, entre 2007 e 2010. “Ele chamou a responsabilidade e assumiu o comando do processo", lembra. Com Eduardo Campos, o comando do Pacto passou para a secretaria de Planejamento e o governador participava das reuniões uma vez por mês.

Aos poucos, os quadros do grupo político foram migrando para a Prefeitura do Recife – conquistada desde 2012 por Geraldo Julio – e passaram a pensar na candidatura à Presidência da República. “O distanciamento da liderança carismática, que sai para a candidatura à Presidência, e em seguida a morte, desmontam a governança”, comenta.

Com a perda paulatina dessa visão sistemática da segurança, observa o sociólogo, a liderança foi definhando. "Os corporativismos voltaram a surgir e quem comanda são os policiais”, acrescenta.

O novo Pacto

Quando o Pacto pela Vida foi instituído, em maio de 2007, Pernambuco registrava altos índices de criminalidade. No ano anterior, foram registrados 4.638 assassinatos. Isso significa 55 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes, o que colocava o estado entre os três mais violentos do Brasil.

Diante do recrudescimento da violência, depois de o estado atingir, em 2010, 14% de redução do número de homicídios, superando a meta dos 12% imposta pelo Pacto, Ratton aponta alguns caminhos. Para ele, é preciso recuperar a capacidade de investigar os homicídios. “É necessário sinalizar para a sociedade que a garantia da vida é prioridade”, atesta.

Além disso, ele diz que o estado deve fazer a repactuação com a Polícia Militar. "É preciso encerrar a greve oculta”, diz, referindo-se ao processo iniciado em 6 de dezembro de 2016, quando líderes de associações de cabos e soldados entraram em rota de colisão com a administração Paulo Câmara (PSB). Na época, o Exército foi acionado e passou a policiar as ruas do Grande Recife. Meses depois, os principais líderes foram expulsos da corporação.

José Luiz Ratton aponta principalmente a necessidade de investir em programas de prevenção. Ele cita o Programa Atitude, que trabalha com usuários de drogas, sobretudo, crack e seus familiares. “O Programa é barato. Custa R$ 15 milhões por ano, o que não representa praticamente nada no orçamento. É um programa reconhecido internacionalmente e que precisa ser ampliado. Pode quadruplicar as ações”, sentencia.

Por último, ele afirma que é preciso recuperar a transparência dos dados informados à sociedade. Até este ano, o site da Secretaria de Defesa Social apresentava uma relação completa das vítimas de CVLIs, a cada mês, com nome, sexo, idade e local do crime. Nos últimos meses, a SDS passou a publicar apenas números consolidados da violência. “As polícias aprenderam a maquiar. Houve perda da transparência do Pacto”, ressaltou.

Gestão

O gestor do DHPP, Ivaldo Pereira, também aponta caminhos para a melhoria das ações do Pacto pela Vida. Mesmo sem reconhecer a perda de governança ou de integração entre governo e polícias, ele acredita que é preciso reforçar o investimento.

Pereira ressalta que o governo se comprometeu a fazer concursos anualmente para repor e evitar buracos nos quadros das Polícias Militar e Civil. “É preciso fazer concurso sempre. É preciso readaptar o Pacto”, resume.

Pereira também contesta a perda da transparência. Segundo ele, foi preciso implantar o novo sistema para evitar distorções. “Antes, entravam nas estatísticas as mortes a esclarecer. Havia casos de mortes que ocorriam bem depois, nos hospitais, depois da prática do crime. A atualização é constante. Só publicamos, agora, a relação definitiva e correta”, justifica.

O gestor do DHPP também destaca a necessidade de relação democrática entre o governo e as entidades que representam os policiais. “Não existe problema. As entidades devem se posicionar e o governo deve participar das negociações”, acrescenta.

Por fim, Pereira alerta para a necessidade de mais participação dos municípios nas ações contra a violência. “É preciso fazer urbanização, iluminação e garantir diversão para as pessoas nos parque e praças. Devemos impedir uso de locais públicos para a venda de drogas e precisamos atuar no fechamento de bares e boates que concentram problemas”, afirma.

 

Link da Matéria