'Caçadores' de morcegos percorrem áreas verdes para catalogar animais

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06.11.2019

 

SÃO PAULO - Eles podem comer até metade do próprio peso em uma só noite. Ao contrário do que muitos pensam, enxergam muito bem e, embora assustem muitas pessoas, exercem mais o papel de heróis na natureza do que de vilões. Únicos mamíferos capazes de voar, os morcegos se adaptaram à rotina das cidades ao longo dos anos e se tornaram presentes não só em parques: os que comem insetos podem "morar" no forro das residências. Em São Paulo, especialistas percorrem as áreas verdes para catalogar as espécies existentes na cidade e, na noite de uma terça-feira, o Estado acompanhou uma dessas "expedições" para obter informações sobre os morcegos paulistanos.

O trabalho de biólogos e veterinários da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente e do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) foi realizado no Parque Cidade de Toronto, na zona oeste da cidade. O objetivo era quantificar o número de espécies encontradas e coletar material para exames na Universidade de São Paulo (USP). Uma das participantes foi a bióloga Adriana Ruckert, que estuda os animais há 16 anos.

"Sou apaixonada por eles, são fascinantes", diz ela, que não sai de casa sem pelo menos algum brinco, colar ou anel que remeta ao mamífero da ordem Chiroptera, palavra que pode ser lida como "mãos que se transformaram em asas".

Em meio ao belo bosque de árvores do parque, durante o trabalho de montagem das redes de captura, Adriana dá explicações sobre os morcegos e desmistifica o temor em relação a eles. Ela conta que estão divididos em duas subordens: Megachiroptera e Microchiroptera. A Megachiroptera contém apenas a família Pterodidae, que está presente no Velho Mundo (Africa, Asia e Oceania). São as chamadas "raposas voadoras", morcegos gigantescos que se alimentam de frutas e possuem uma envergadura de incríveis um metro e setenta centímetros. São comuns alguns vídeos na internet dos filhotes desses animais sendo amamentados com mamadeiras. "No Brasil não há morcegos desse porte", diz Adriana.

Tudo que é restrito na subordem Megachiroptera é amplo na Microchiroptera - só na cidade de São Paulo, são 43 espécies catalogadas. "Um número considerável se levarmos em conta o tamanho da urbanização em uma cidade como a nossa", ressalta Adriana. "Eles são animais sinantrópicos, que aprenderam a conviver com o homem, independente deste querer ou não sua presença".

São três as famílias presentes na capital: a Molosidae, a Vespertilionidae e a Phyllostomidae. Com hábitos variados de alimentação, os mais comuns são os insetívoros, que consomem mosquitos, moscas, besouros entre outros. "Alguns autores citam que eles podem comer mais de 1 mil insetos em uma só noite", destaca Adriana, ressaltando o papel que o animal exerce no equilíbrio ambiental.

Segundo Enrico Bernard, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo de Quirópteros (Sbeq), os morcegos que comem insetos são capazes de comer até metade do próprio peso. "Mas isso varia de acordo com a espécie, o sexo e o tipo de inseto."

Existem também os frugívoros, que se alimentam de frutas das mais variadas, como manga, jabuticaba, nêspera, jabuticaba, pitanga e outras. Os nectarívoros se alimentam de néctar. Estes últimos são muito importantes como polinizadores. Diversas árvores dependem deles para serem polinizadas. Flores que exalam seu perfume durante a noite geralmente atraem morcegos. Mais difíceis de serem encontrados na cidade há os carnívoros, que se alimentam de pequenos roedores e de anfíbios e os piscívoros, que se alimentam de peixes. Além desses há os temidos hemátofagos, que se alimentam de sangue e são encontrados em regiões de "borda" da cidade, como áreas periféricas, com uma predominância maior de árvores.

O levantamento mais atualizado sobre o animal aponta que, no mundo, há 1.411 espécies de morcego, de acordo com o presidente da Sbeq. No Brasil, são 182 espécies confirmadas. "O que mostra que o Brasil tem uma riqueza muito alta de espécies."

Bernard, que também é professor associado do Departamento de Zoologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que o morcego é um animal estigmatizado, principalmente pela falta de conhecimento da população sobre as contribuições do animal para a natureza e o ser humano.

"Das 1.411 espécies, só três se alimentam de sangue e as três ocorrem no Brasil. O que acontece é que, geralmente, ocorre um alarmismo muito grande quando há mordidas. A gente acabou de concluir um projeto de mestrado para ver o que eles têm comido e encontramos que eles se alimentavam de dez pragas agrícolas, uma mosca que é vetor para doenças de bovino e três mosquitos vetores de doenças para humanos, inclusive do grupo que transmite a malária."

No parque, a equipe de pesquisadores monta as redes em uma área próxima às frondosas copas de árvores e ao lago. "Está vendo essa movimentação de pássaros em busca de insetos em cima do lago? Daqui a pouco, serão os morcegos que estarão na caça deles, basta a noite chegar", aponta Adriana para a água, enquanto um vai e vem de passarinhos emoldura o entardecer no parque. A colocação da rede precisa ser feita em um horário específico, bem no final da tarde. Não pode ser mais cedo, pois corre o risco de muitos pássaros caírem na "armadilha". "Pássaros são bem mais agitados do que os morcegos quando caem nas redes. Difícil tirá-los, ficam bem mais estressados", explica Débora Cardoso de Oliveira, integrante da equipe. E, mesmo com todo o cuidado, dois pequenos Corruíras engancharam-se no emaranhado de fios. Nesse momento, entrou em ação o biólogo Marcus Azevedo, que, com muito cuidado tirou os dois e rapidamente os devolveu à natureza.

Os morcegos começam a aparecer nas redes, a maior parte deles da espécie Myotis nigricans, muito pequeninos, medindo cinco centímetros de comprimento e pesando cerca de cinco gramas. Durante a noite, apesar de enxergarem muito bem, se guiam principalmente pelos sons que eles próprios emitem e que voltam para eles. "É uma espécie de sonar natural que possuem, semelhante ao sistema de um submarino. Com isso tornam-se excelentes caçadores", diz Adriana. Eles também têm a característica de viver muito tempo, em média 20 anos. Ao contrário dos roedores, que vivem pouco e têm muitos filhotes, os morcegos vivem muito e deixam bem menos descendentes que a Ordem Rodentia, do qual pertencem os ratos. De cada gestação nasce apenas um filhote.

A sala de administração do parque é transformada em um "laboratório de campo" pelos pesquisadores. Os animais capturados vão sendo pesados e coletadas amostras de saliva, sangue e fezes dos animais. Com a bióloga Adriana, trabalha o veterinário Marcelo Schiavonardi, da Divisão de Fauna Silvestre da Secretaria do Verde e Meio Ambiente. Responsável por armazenar as amostras, elas serão levadas depois para o laboratório da USP no Departamento de Microbiologia e Medicina Veterinária. Exames são feitos para avaliar a saúde dos morcegos com relação aos vírus da raiva e do corona vírus e também para fazer um levantamento das espécies que vivem na área urbana da cidade. Além desse parque, um clube na beira da Represa Guarapiranga, na zona sul da cidade, é utilizado para coletar os mamíferos. "A cada ano mudamos os locais de captura dos morcegos", explica o veterinário.

A equipe trabalha de modo intenso até às 21 horas - eles chegaram às 16h30 para começar a montagem das redes. São coletados 11 morcegos insetívoros da espécie Myotis nigricans, um morcego nectarívoro Glossophaga soricina e um morcego frugívoro Artibeus lituratus. Este último a grande "estrela" da noite, foi capturado quando os biólogos já pensavam em começar a terminar os trabalhos. Trata-se de um morcego imponente, um dos maiores encontrados em área urbana.

"É uma fêmea e está amamentando", explica Adriana, admirada com o animal em mãos. A dupla experiente de bióloga e veterinário são auxiliados pelos estagiários da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, Pedro Henrique e Anna Yves, que a cada animal estudado mostram seu interesse e amor pelos morcegos.

O aprendiz de biólogo Pedro, no entanto, emociona-se mesmo ao soltar um dos pequenos Myotis nigricans após a coleta das amostras. "Eles são lindos demais", finaliza. Todos os animais são devidamente soltos na natureza após o estudo.

 

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