Equiparação de efeitos de união estável a casamento está em debate no STF

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03/04/2017

No dia 30 de março de 2017, verificou-se o prosseguimento do julgamento do Recurso Extraordinário 878.694-MG acerca da assimetria entre os regimes sucessórios da união estável e do casamento; tema com repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. O julgamento em questão teve início no dia 31 de agosto de 2016, ocasião em que o relator — ministro Luis Roberto Barroso —, manifestou-se pela aplicação do artigo 1.829 do Código Civil brasileiro vigente à sucessão causa mortis na união estável; por entender ser inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros.

Naquela oportunidade, o relator foi acompanhado em seu posicionamento pelos seguintes ministros: Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber e Luiz Fux. O ministro Luis Roberto Barroso reputa inconstitucional a redação do artigo 1.790 do Código Civil vigente, por ser norma que “busca hierarquizar entidades familiares de diferentes tipos, em violação à igualdade entre as famílias e aos princípios da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação ao retrocesso. No caso dos autos, tal dispositivo produz como resultado a redução da proteção sucessória da companheira unicamente em razão da não conversão de sua união em casamento”[1].

Tendo vista o possível impacto do julgamento para quantidade considerável de casais que optaram por conviver em união estável no Brasil, o ministro Dias Toffoli teve a cautela de pedir vistas dos autos, no intuito de refletir melhor sobre a questão. Com o prosseguimento do julgamento do mencionado Recurso Extraordinário com repercussão geral, o ministro Dias Toffoli divergiu do relator. Para ele, o constituinte deliberadamente distinguiu a união estável do casamento ao prescrever que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento (art. 226, § 3º; Constituição Federal de 1988)[2].

Durante três semanas, analisamos as diversas assimetrias existentes entre a união estável e o casamento civil no direito brasileiro nesta coluna. Na primeira parte, realizamos um breve excurso histórico do tratamento jurídico dispensado às uniões de fato[3]. Depois, indicamos alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça que podem evidenciar a existência de um regime jurídico diferenciado para as questões patrimoniais da união estável em relação ao casamento civil[4]. Na terceira parte, analisamos o tratamento jurídico dispensado às uniões de fato na Alemanha e advogamos que o ideal seria reputar a união estável uma espécie de casamento de fato, de modo a conferir tutela semelhante a do casamento para tais uniões[5]. Entretanto, apesar de idealizarmos a referida equiparação ou aproximação entre os institutos, ali manifestamos entendimento no sentido de que: “A constitucionalização do instituto da união estável, contudo, é um verdadeiro entrave à efetiva tutela dos conviventes. Na medida em que, inclusive, prescreve a facilitação da conversão da união estável em casamento; parece pressupor uma diferença entre os regimes jurídicos. Afinal, não faz sentido converter para algo que não seja diverso da situação anterior”[6].

Destarte, no dia 30 de março de 2017, o ministro Dias Toffoli proferiu voto-vista, asseverando que tal diferenciação realizada entre a união estável e o casamento civil no texto constitucional autoriza concluir pela possibilidade de se atribuir efeitos jurídicos diversos aos institutos. Nas palavras do ministro Dias Toffoli: “O casamento, portanto, não é união estável, o que autoriza que seus respectivos regimes jurídicos sejam distintos. Portanto, há de ser respeitada a opção feita pelos indivíduos que decidem por se submeter a um ou a outro regime”[7]. Em texto bem escrito, com referências a doutrina brasileira, espanhola e alemã, verificou-se uma manifestação equilibrada no sentido de garantir a liberdade de escolha dos indivíduos; bem como a preservação das competências do Poder Legislativo[8]. Neste sentido, verbi gratia, o Direito da Inglaterra e do País de Gales também privilegia a liberdade individual. Naquele país, a vontade do testador (will) é privilegiada em relação a law of intestacy. De acordo com o Act de 1925 que regulava a matéria na Inglaterra e País de Gales, somente se o morto não houvesse elaborado um testamento, devia-se observar determinada ordem para suceder, que privilegiava os parentes mais próximos. Esta regulação sofreu modificações com o advento do Inheritance (Provision for Family and Dependants) Act, de 1975; que passou a suplementar a vontade do testador apenas naquilo que se mostrasse imprescindível, no sentido de preservar o testamentary freedom. Assim, institui-se regras no sentido de prover a manutenção do cônjuge sobrevivo e seus dependentes[9].

Ao suplementar a vontade do testador, busca a citada lei assegurar a proteção à família do falecido, especialmente aos descendentes. Para que isto aconteça, é suficiente a comprovação de que o falecido desejou instituir entidade familiar quando vivo, mediante o casamento (marriage) ou parceria civil (civil partnership). A partir de 2013, passou a viger o Marriage (Same Sex Couples) Act; que conferiu às pessoas de orientação homoafetiva o direito ao casamento ou a parceria civil. Aos casais de orientação heterossexual, entretanto, restou apenas o direito a contrair casamento ou à coabitação (Living Together); sem que fosse permitido o registro da união de fato como parceria civil (a semelhança do que foi facultado aos parceiros homoafetivos). Seja no casamento (marriage) ou nas uniões de fato (Civil partnership), assegura-se ao casal iguais direitos quanto a partilha dos bens após a dissolução do casamento ou da união de fato, conforme se extrai do leading case Lawrence v. Gallagher[10]. Ao casal heterossexual que não opta pelo casamento, assiste o direito a coabitação (cohabitation) ou living together. Neste caso, podem celebrar um contrato de coabitação (Living Together Agreement), regulando certos aspectos da convivência marital. Entretanto, o regime sucessório aplicado a tais uniões de fato na Inglaterra e País de Gales difere bastante do tratamento dispensado ao casamento civil naquele sistema. Destarte, havendo testamento válido, poderá o testador dispor livremente sobre a totalidade dos seus bens, nos termos do Wills Act (de 1837), Section 3[11]. Mas, se determinado convivente heterossexual em uma união de fato vem a óbito sem dispor de seus bens por testamento (will), ou se inexistir testamento válido; a referida legislação aplicável à Inglaterra e ao País de Gales não atribui ao coabitante ou convivente qualquer direito sucessório, de modo que nada herdará do patrimônio do de cujus[12]. Ao convivente na união de fato só será assegurado direito sucessório se se verificar cláusula constante em testamento que expressamente o contemple. Por outro lado, o companheiro supérstite poderá requerer um auxílio financeiro para a sua sobrevivência, a ser pago com recursos obtidos junto ao patrimônio do falecido, conforme prescreve a Section 1, da Inheritance (Provision for Family and dependants) Act, de 1975.

Ademais, as cortes daquela nação também adotaram entendimento a partir do leading case Granham-York v. York, no sentido de que a companheira que contribuiu financeiramente para a aquisição do bem tem direito a uma parte do imóvel[13]. Neste caso, firmou-se entendimento no sentido de presumir a existência de interesses comuns em relação aos bens adquiridos com a colaboração da convivente[14]. Tal entendimento é semelhante àquele constante do enunciado 380 da Súmula de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, que admite a partilha dos bens frutos do esforço comum, seguindo a lógica da dissolução das sociedades de fato. Observa-se, pois, que – à semelhança do direito germânico — o direito da Inglaterra e do País de Gales também distingue os efeitos sucessórios das uniões de fato (Civil partnership) em relação ao casamento, no intuito de preservar a liberdade dos indivíduos[15]. Por fim, parece-nos equivocada a ideia que advoga uma plena equiparação entre a união estável e o casamento civil quanto a sucessão a causa de morte. Do voto do ministro relator Luis Roberto Barroso, extrai-se argumentação pela ausência de hierarquia entre as entidades familiares constitucionalmente protegidas. A igual dignidade das entidades familiares resultaria, segundo o entendimento do ministro Barroso, na equiparação plena também no tocante aos direitos sucessórios.

Ora, ao lado da união estável e do casamento civil, é de se reconhecer também como entidades familiares constitucionalmente tuteladas: a família monoparental (a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes), a família anaparental (comunidades formadas por parentes colaterais tais como irmãos, tios e sobrinhos, primos, etc). Os colaterais passarão a ser herdeiros necessários em razão desta suposta igualdade? Um sobrinho que resida no imóvel junto com um tio que vem a falecer pouco depois poderá alegar ser titular de direito real de habitação? Parece-nos que não. Adotar interpretação neste sentido seria ignorar as especificidades de cada uma destas entidades familiares, violando o chamado direito a diferença ou pluralismo das entidades familiares. Como assevera a professora doutora Larissa Maria de Moraes Leal, é necessário lidar com um conceito plural de entidade familiar que atenda às demandas da sociedade contemporânea, de modo que os direitos e deveres reconhecidos em um contexto plural nas relações de família sejam “necessariamente distintos”, de modo a permitir a integração de diversos aspectos tais como o afeto, as conjugalidades, o biologismo etc.[16].

Por ora, o julgamento foi suspenso mais uma vez, a pedido do experiente ministro Marco Aurélio, que tem um perfil garantista; de modo que a questão da equiparação dos efeitos sucessórios da união estável aos do casamento ainda não foi solucionada.

 

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