Ano VIII - Nº 91 - Novembro/2001












 

Travestis buscam o anonimato e a visibilidade

Mestranda em antropologia realiza estudo com travestis e mostra que a identidade deles é caracterizada por um conflito entre a busca pelo anonimato e o querer ser notado

Clécio Vidal


Pesquisa realizada no Departamento de Antropologia revela que a identidade dos travestis é caracterizada pela ambigüidade e pela constante transformação. Segundo a mestranda Cecília Patrício, essas características, e não o interesse financeiro, seriam a principal responsável pelas constantes mudanças de cidade, evidenciadas nos travestis que também praticam a prostituição.

De acordo com a pesquisadora, a identidade dos travestis é marcada por um conflito entre a busca pelo anonimato e, ao mesmo tempo, pela visibilidade. "Durante o estudo, percebi que travestis saíam pelas ruas vestidos de mulher, mas também procuravam formas de passar despercebidos, usando óculos escuros, por exemplo", afirma Cecília.

Sendo assim, para ela, o travesti não se trata apenas daquele homem que se veste com roupas femininas e usa cores chamativas, mas do indivíduo que procura assumir e simultaneamente ocultar sua identidade, mediante modificações no corpo e no comportamento.

Segundo Cecília Patrício, a concentração de travestis em espaços restritos como boates e mesmo em pontos de prostituição, além da opção pela aparição durante a noite, confirmam a identidade ambígua dessas pessoas. "O fato de alguns dos entrevistados terem durante algum tempo deixado de se travestir e depois voltado a fazê-lo revela o caráter dinâmico no travestismo", conta a pesquisadora.

Um dos focos da pesquisa, centrada na cidade de Campina Grande, é a análise da constante mudança de lugar dos travestis. De acordo com a pesquisadora, a mobilidade espacial desses indivíduos é explicada também pelo duplo caráter de sua identidade. O fator econômico não é o único impulsionador da procura por cidades sempre maiores, no caso dos que praticam a prostituição. A principal causa dessa constante mobilidade é a necessidade que o travesti tem de aparecer e ser anônimo.

"Os travestis que saem do interior, onde são completamente discriminados, buscam um lugar onde possam mostrar-se com menos preconceitos. Mas o desejo de chamar atenção e ainda permanecer anônimo impulsiona o travesti a estar sempre se deslocando", esclarece. Antes de começar a ser vítima do preconceito, ele se muda, mas a mudança também significa a oportunidade de aparecer em outros lugares.

De acordo com a pesquisadora, Campina Grande é uma cidade de grande concentração de travestis por ser um lugar de passagem obrigatória para outras localidades na Paraíba (o que aumenta a visibilidade), além de ser um ponto que facilita o acesso para a capital do Estado, João Pessoa, e de lá para outras capitais e até o exterior. "Ao trabalhar num lugar diferente de onde mora, o travesti tenta conciliar as esferas de vivência pública e da intimidade", explica Cecília.

Mas o fator econômico pode, algumas vezes, ser o único responsável por esta busca simultânea pelo anonimato e pela visibilidade. "Existem travestis que só o são no momento em que exercem a prostituição. Eles aproveitam características femininas que possuem para utilizá-las na prostituição, mas no restante do tempo se comportam como heterossexuais", diz a mestranda.

Ela conta que a mudança de identidade é uma característica tão marcante do travestismo, que não é incomum o fato de homens travestis se casarem com mulheres e de travestis que encontram uma companheira e deixam de travestir-se. A pesquisadora afirma que, além da constante mudança de lugar, os travestis estão sempre buscando variar a aparência e também a profissão. Cecília Patrício define o travesti como alguém com o desejo de possuir múltiplas identidades.

Glossário

Travesti: homem ou mulher que se veste e assume características físicas ou psicossociais atribuídas ao sexo oposto. Estão incluídos nessa definição aqueles que praticam o homoerotismo. O travesti também se caracteriza pelo uso de hormônios no corpo, e do silicone. Ele se distingue do transexual por não querer fazer a cirurgia da retirada do membro sexual.

Transexual: homem ou mulher que deseja ser do sexo oposto, submetendo-se à cirurgia para transformação sexual.

Transformista: Pessoa que, mudando de traje, disfarça-se rapidamente. Pessoas que se trajam como o sexo oposto para eventos, festas e shows.

Homossexual: Desejo, afeto e relaciona-mento de uma pessoa com outra do mesmo sexo. A maioria dos travestis, transformistas e drag queens fazem parte desse grupo.

Drag queen: homem que se veste de mulher, utilizando roupas exóticas e maquiagem carregada, como diversão ou trabalho. A drag queen trabalha, normalmente, em bares e casas de espetáculos. O homem não chega a parecer feminino porque a drag é o exagero da femininilidade.


Eles são vítimas do preconceito

Christiane Falcão e Carla Ferri, travestis que já trabalharam em boates no exterior, atualmente exercem a atividade de cabeleireiro. Sem se prostituir, as duas afirmam que, ainda assim, são vítimas da discrimação no Brasil. "Na França, por exemplo, foi possível assumir plenamente minha identidade. Lá, a pessoa pode sair até mesmo pintada de tinta fosforescente, que ninguém mexe com você", revela Christiane.

Elas consideram sua carreira profissional consolidada, um dos motivos de serem menos vitimadas pelo preconceito. Raquel Simpson tem a mesma opinião. "Se o travesti não se destaca profissionalmente, vai acabar tendo que se dedicar à prostituição, e, na maioria das vezes, por conseqüência, ao roubo", declara.

Raquel Simpson ganha a vida animando festas infantis. Ela diz que só se traveste à noite, pois há poucas oportunidades de emprego para os travestis. "Fiz uma opção. Entre estar travestida todo o tempo e ser marginalizada socialmente, prefiro ter um lugar na sociedade".

O fato de só se vestir com roupas femininas durante um período do dia não a incomoda. Ela conta que só se traveste para mostrar sua feminilidade aos homens e não por extravagância. Até mesmo os homossexuais discriminam os travestis. Essa revelação foi feita por Carla Ferri, que conta o caso de um amigo seu barrado numa sauna gay.

O preconceito faz com que Christiane Falcão tenha um número reduzido de amizades. "São poucas as pessoas em que você pode confiar de verdade. Acho que a única pessoa que é 100% minha amiga é minha mãe." Além de não se ligar muito às pessoas, Christiane Falcão não se prende aos lugares. "Eu não gosto da mesmice. Tenho uma alma cigana". Entre as religiões, os travestis preferem os cultos afro-brasileiros. "Neles somos olhados não pela nossa aparência, mas pelo nosso interior", declara Christiane.