Ano VIII - Nº 91 - Novembro/2001












 

Filósofo afirma que o mundo está doente

O filósofo Vincenzo di Matteo diz que o Ocidente apostou no poder da razão, não na sua garantia. Para ele, apesar de tudo, a Filosofia não morre, apenas se transforma

José Carlos Targino

Os acontecimentos de 11 de setembro e os seus desdobramentos dão a impressão de que a insânia continua dominando o mundo. No entanto, a partir de Sócrates, a humanidade sempre conviveu com a idéia de que os atos humanos poderiam ser norteados pela razão. Como o Sr. vê a questão?
Já dizia Nietzsche que não existem fatos, existem interpretações. Sem dúvida, há varias leituras que poderíamos realizar acerca dos últimos acontecimentos, mas duas parecem consensuais. Primeiro: toda guerra é a trágica expressão do fracasso da razão em mediar o conflito. Segundo, sua primeira vítima é a verdade. Poderíamos concluir que é a barbárie o horizonte dentro do qual se desenrolam a história da humanidade e nossas pequenas histórias individuais? A tradição filosófica ocidental parece responder que não ao apostar no poder da razão, da verdade, da justiça, da liberdade, da consciência e da responsabilidade. Trata-se, porém, de uma aposta, não de uma garantia, especialmente em curto prazo, considerando que existem outros fatores que interferem poderosamente na vida dos homens.

Uma vez que as ações humanas não costumam ser ditadas pela racionalidade, cabe a indagação: a razão fracassou ou o homem é um animal condenado à demência?
Digamos que uma certa concepção de razão fracassou e que a demência não é um destino, mas uma das possibilidades do Homo sapiensdemens. De fato, o projeto civilizatório da modernidade alimentado pela crença que a razão nos libertaria da servidão da ignorância, da religião, da tirania política fracassou ou está em profunda crise. O espírito do século das luzes tinha como objetivo livrar os homens do medo e da tirania e fazer deles senhores, mas, como se expressam Horkeimer e Adorno, "completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal". Não era necessário o trágico espetáculo dos eventos do dia 11 de setembro para concluirmos, perplexos, que o mundo está doente e gravemente doente a despeito de avanços gigantescos na área da tecnociência. A primeira grande doença decorre precisamente do fato de que a chamada razão instrumental progrediu muito mais rapidamente do que uma razão determinadora dos fins. Houve um aumento da produção dos bens materiais e simbólicos, mas concomitantemente uma crise e até desaparecimento dos referenciais éticos judaico-cristãos. Crise religiosa, crise da ideologia igualitária com o desmoronamento do chamado socialismo real e crise da própria razão em poder instituir uma nova ordenação normativa de realização pessoal e comunitária. A segunda é que, se de fato houve um avanço das democracias, elas não conseguiram ainda tornar de fato de todos o que proclamam direito de cada um. Há uma violência, institucionalizada ou não, inter e intranacional, social e interpessoal que se materializa sob inúmeras formas: exploração econômica, exclusão social, discriminação de todas as matizes e até tortura. Essas experiências de violência geram dois sentimentos igualmente deletérios para a saúde social e pessoal: a revolta alucinada do terrorismo ou a depressão decorrente de um sentimento de impotência. Em resumo, já temos praticamente uma economia e tecnologia globalizadas, movidas por um pragmatismo cínico que regula as relações internacionais, nacionais, sociais e pessoais, visto que um certo relativismo, quanto não niilismo ético, não tem força para animar nossa cultura, marcada ao mesmo tempo por um hedonismo narcísico e uma sociedade depressiva que busca a saída numa crescente psiquiatrização biológica das doenças do espírito.

Platão preconiza, na República, que só os reis-filósofos reuniriam em si as condições necessárias ao exercício dos negócios do Estado. O Sr. acredita que a humanidade seria melhor se os filósofos, e não os políticos tradicionais, governassem o mundo?
A resposta, infelizmente, não é necessariamente 'sim'. Não pode ser dada de antemão. É possível até discordar de Platão, como fez outro grande filósofo, E. Kant, sugerindo que "não se deve esperar que os reis filosofem ou se tornem filósofos, nem menos desejar isso, pois a posse da força corrompe inevitavelmente o livre juízo da razão". A função social do filósofo não é tanto administrar o poder político, mas ser a consciência crítica dele.

Enfim, como conciliar a filosofia com a realidade dos nossos dias?
Espremida entre as superpotências de um saber mais antigo, o religioso, e um saber mais novo, o científico, a Filosofia parece que não consegue se apresentar aos homens de hoje com as certezas consoladoras da fé ou da objetividade e eficácia pragmática da ciência e da técnica, nem possui o fascínio e a sedução da arte. Proclama-se a morte da Filosofia. Como matá-la, porém, sem filosofar, sem contrapor-lhe uma outra concepção de Filosofia? A Filosofia se transforma, não morre, pelo menos até quando houver homens que, como Sócrates, acreditem: "Uma vida sem investigação não merece ser vivida".