Ética da clonagem
humana em discussão
Doutora em Genética, pesquisadora
e professora da UFPE, Aline Alexandrino adverte para o fato de
a área da ciência genética ainda ser nova
para abrigar conceitos definitivos
José Carlos Targino
O aspecto ético é
o que primeiro vem à tona quando se discute a questão
da clonagem humana. É eticamente reprovável clonar
seres humanos?
Para afirmar se uma ação ou uma atividade é
ou não ética, é necessário definir
o que se quer dizer com esse conceito. A ética está
intimamente ligada às noções de correção
de comportamento e tal correção aplica-se aos costumes
vigentes, de forma a não cercear ou prejudicar a liberdade
de todos e a de cada um. A técnica da clonagem ainda não
apresenta uma prática que permita inferir se seu uso pode
cercear ou prejudicar a liberdade dos seres humanos. É
preciso lembrar que técnicas hoje corriqueiras, como as
vacinas e as transfusões, já foram questionadas
veementemente em outros tempos e sociedades. Portanto, para afirmar
o caráter ético da clonagem deveria haver clareza
não apenas sobre a necessidade do uso dessa técnica
em seres humanos, como sobre os possíveis usos e/ou abusos
da sua utilização.
Acredita-se que a clonagem terapêutica
é importante, do ponto de vista médico. Como a sra.
vê esta questão?
A obtenção de órgãos e tecidos, com
finalidade terapêutica, constitui uma necessidade para a
resolução de problemas existentes, em função
do consentimento de doadores e da compatibilidade exigida para
que um procedimento terapêutico tenha êxito. O que
parece estar acontecendo é que as técnicas que envolvem
o conhecimento da genética moderna têm sido veiculadas
como uma possível solução para um número
considerável de problemas terapêuticos. Não
se deve esquecer que a genética moderna não tem
ainda um século de aplicação e as técnicas
que utilizam o conhecimento molecular apenas algumas décadas.
A ciência caracteriza-se, entre outras coisas, pela reprodutibilidade
e para tanto se faz necessária uma quantidade considerável
de experimentos que avaliem as variáveis envolvidas.
Cientistas mais cautelosos alegam
que a clonagem humana só será aprovada se for, antes,
aperfeiçoada em animais. Quais são os riscos oferecidos
por esse tipo de clonagem?
O fato de uma técnica ter êxito em outras espécies
animais não a qualifica necessariamente como adequada para
o uso na espécie humana. Cada ser vivo apresenta uma fisiologia
própria, a qual implica ajustes específicos da técnica,
e às vezes até inviabilizam o seu uso. Além
disso, no caso do ser humano há características
específicas como a organização social e cultural
que podem, apesar do êxito da técnica, interferir
na sua utilização. Por exemplo, nem se cogita discutir
a questão ética de clonagem em animais. Os embriões
clonados defeituosos ou inadequados podem, portanto, ser "descartados"
sem que problemas éticos ou morais sejam colocados. Entretanto,
o "descarte" de embriões humanos clonados suscita
não apenas questões éticas e morais, como
também religiosas.
Há milhares de anos, o
processo de reprodução é considerado sagrado.
A clonagem não estaria lançando uma suspeita sobre
esse processo?
Se por sagrado se entende o que é concernente às
questões divinas, há duas formas possíveis
de avaliação. Uma "negativa", em função
de que apenas uma força ou um ser superior poderia criar
outros seres. A clonagem estaria então levantando a possibilidade
de que o homem poderia também se tornar um criador. Entretanto,
para uma crença que considerasse que "Deus criou o
homem à sua imagem e semelhança", a avaliação
poderia até ser considerada "positiva", pois
essa semelhança implicaria o uso de uma inteligência
que lhe possibilitaria realizar certos feitos em função
da pesquisa e suas aplicações.
O comentarista de ciência da revista "Reason",
Ronald Bailey, acredita que os médicos Severino Antinori
e Panayiotis Zavos são "personagens desequilibrados".
Isso seria uma nova forma de inquisição, capaz de
atrasar o avanço da ciência?
Na minha opinião, o que está por trás das
observações ou críticas que se fazem aos
pesquisadores é o fato de que, ultimamente, a sociedade
está começando a questionar o papel social do cientista.
Durante séculos, eles constituíram um grupo excêntrico
que, ou se identificava com o "benfeitor humanitário",
ou com o "cientista louco", sem que fosse cobrada do
grupo a exigência de um contrato social, de responsabilidade
social. O papel da sociedade é o de observar, fiscalizar
e cobrar. Não creio, entretanto, que se possa nem que se
deva atrasar o caminho da ciência. O que se pode e se deve
fazer é patrocinar, incentivar e provocar debates de amplo
alcance sobre os avanços da ciência e os interesses
da sociedade. Isso feito paralelamente a um recrutamento criterioso
de cientistas, por intermédio do uso de um enfoque moral
e ético em relação à pesquisa e à
sua aplicação, e em conjunto com uma regulamentação
jurídica adequada, sobre perdas e danos, propriedade intelectual,
responsabilidade em relação a acidentes, negligência,
imperícia etc., ajudaria a impedir que excessos fossem
cometidos na atividade do pesquisador.
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