Ano VIII - Nº 93 - Janeiro/2002












 

Ética da clonagem humana em discussão

Doutora em Genética, pesquisadora e professora da UFPE, Aline Alexandrino adverte para o fato de a área da ciência genética ainda ser nova para abrigar conceitos definitivos

José Carlos Targino

O aspecto ético é o que primeiro vem à tona quando se discute a questão da clonagem humana. É eticamente reprovável clonar seres humanos?
Para afirmar se uma ação ou uma atividade é ou não ética, é necessário definir o que se quer dizer com esse conceito. A ética está intimamente ligada às noções de correção de comportamento e tal correção aplica-se aos costumes vigentes, de forma a não cercear ou prejudicar a liberdade de todos e a de cada um. A técnica da clonagem ainda não apresenta uma prática que permita inferir se seu uso pode cercear ou prejudicar a liberdade dos seres humanos. É preciso lembrar que técnicas hoje corriqueiras, como as vacinas e as transfusões, já foram questionadas veementemente em outros tempos e sociedades. Portanto, para afirmar o caráter ético da clonagem deveria haver clareza não apenas sobre a necessidade do uso dessa técnica em seres humanos, como sobre os possíveis usos e/ou abusos da sua utilização.

Acredita-se que a clonagem terapêutica é importante, do ponto de vista médico. Como a sra. vê esta questão?
A obtenção de órgãos e tecidos, com finalidade terapêutica, constitui uma necessidade para a resolução de problemas existentes, em função do consentimento de doadores e da compatibilidade exigida para que um procedimento terapêutico tenha êxito. O que parece estar acontecendo é que as técnicas que envolvem o conhecimento da genética moderna têm sido veiculadas como uma possível solução para um número considerável de problemas terapêuticos. Não se deve esquecer que a genética moderna não tem ainda um século de aplicação e as técnicas que utilizam o conhecimento molecular apenas algumas décadas. A ciência caracteriza-se, entre outras coisas, pela reprodutibilidade e para tanto se faz necessária uma quantidade considerável de experimentos que avaliem as variáveis envolvidas.

Cientistas mais cautelosos alegam que a clonagem humana só será aprovada se for, antes, aperfeiçoada em animais. Quais são os riscos oferecidos por esse tipo de clonagem?
O fato de uma técnica ter êxito em outras espécies animais não a qualifica necessariamente como adequada para o uso na espécie humana. Cada ser vivo apresenta uma fisiologia própria, a qual implica ajustes específicos da técnica, e às vezes até inviabilizam o seu uso. Além disso, no caso do ser humano há características específicas como a organização social e cultural que podem, apesar do êxito da técnica, interferir na sua utilização. Por exemplo, nem se cogita discutir a questão ética de clonagem em animais. Os embriões clonados defeituosos ou inadequados podem, portanto, ser "descartados" sem que problemas éticos ou morais sejam colocados. Entretanto, o "descarte" de embriões humanos clonados suscita não apenas questões éticas e morais, como também religiosas.

Há milhares de anos, o processo de reprodução é considerado sagrado. A clonagem não estaria lançando uma suspeita sobre esse processo?
Se por sagrado se entende o que é concernente às questões divinas, há duas formas possíveis de avaliação. Uma "negativa", em função de que apenas uma força ou um ser superior poderia criar outros seres. A clonagem estaria então levantando a possibilidade de que o homem poderia também se tornar um criador. Entretanto, para uma crença que considerasse que "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança", a avaliação poderia até ser considerada "positiva", pois essa semelhança implicaria o uso de uma inteligência que lhe possibilitaria realizar certos feitos em função da pesquisa e suas aplicações.

O comentarista de ciência da revista "Reason", Ronald Bailey, acredita que os médicos Severino Antinori e Panayiotis Zavos são "personagens desequilibrados". Isso seria uma nova forma de inquisição, capaz de atrasar o avanço da ciência?

Na minha opinião, o que está por trás das observações ou críticas que se fazem aos pesquisadores é o fato de que, ultimamente, a sociedade está começando a questionar o papel social do cientista. Durante séculos, eles constituíram um grupo excêntrico que, ou se identificava com o "benfeitor humanitário", ou com o "cientista louco", sem que fosse cobrada do grupo a exigência de um contrato social, de responsabilidade social. O papel da sociedade é o de observar, fiscalizar e cobrar. Não creio, entretanto, que se possa nem que se deva atrasar o caminho da ciência. O que se pode e se deve fazer é patrocinar, incentivar e provocar debates de amplo alcance sobre os avanços da ciência e os interesses da sociedade. Isso feito paralelamente a um recrutamento criterioso de cientistas, por intermédio do uso de um enfoque moral e ético em relação à pesquisa e à sua aplicação, e em conjunto com uma regulamentação jurídica adequada, sobre perdas e danos, propriedade intelectual, responsabilidade em relação a acidentes, negligência, imperícia etc., ajudaria a impedir que excessos fossem cometidos na atividade do pesquisador.