Instinto materno
à prova da rua
Pesquisa com mães de filhos
que trabalham nas ruas revela que as atenções destinadas
aos menores têm princípios de cuidado semelhantes
aos identificados nas classes mais favorecidas
Clécio
Vidal
Quando vemos crianças vendendo bombons e limpando carros
nos sinais de trânsito, normalmente essa situação
leva a uma imagem de exploração ou de abandono por
parte de suas mães. A antropóloga Sandra Simone
de Araújo, integrante da ONG Pé no Chão,
procurou mostrar que essa opinião não é necessariamente
verdadeira. O resultado de seu trabalho foi a dissertação
A Bruxa Má e a Fada Boa, um Estudo sobre Mães de
Meninos e Meninas que Vivem em Situação de Rua,
desenvolvida na UFPE, para efeito de conclusão do curso
de Mestrado em Antropologia. Durante a pesquisa, foram entrevistadas
oito mães moradoras de Santo Amaro e outras duas da Boa
Vista, ambos bairros do Recife.
“Ao iniciar meus estudos, interessava-me
em saber quem eram as mães e como elas se percebiam diante
da situação de rua de seus filhos. Ser mãe
consiste não somente numa postura individual, mas também
numa identidade social”, afirma ela. Sandra Araújo
explica que é freqüente a representação
das mães de meninos em situação de rua como
“bruxas más” – que desprezam e maltratam
os filhos – em oposição ao arquétipo
(modelo universal) da “deusa mãe”, generosa
e acolhedora.
Essa generalização
origina-se, segundo ela, de uma visão anômala da
sociedade, que tem como modelo dominante de família a divisão
do trabalho por faixas etárias e determina que os adultos
devem sustentar financeiramente as crianças. O que diverge
das crenças estabelecidas socialmente recebe um olhar preconceituoso,
no entender da pesquisadora. “Como na família dessas
mães isso não ocorre ao pé da letra, as pessoas
relacionam, precipitadamente, a condição social
das crianças à identidade das mães”,
explica.
De acordo com a antropóloga,
as mães dos meninos e meninas que vivem em situação
de rua visam a proteger, amar e cuidar do filho. A diferença
está nas estratégias que elas desenvolvem para cuidar
da família. Sandra Araújo afirma que essas mães
reproduzem um contexto também vivido por elas quando eram
crianças. “Não podemos esquecer que a maior
parte dessas mulheres se tornou mãe na adolescência.
Para elas, ir buscar trocados na rua é encarado como ir
para a escola”, diz a pesquisadora.
A pesquisadora verificou que, nesse
caso, assim como as mães das classes sociais mais elevadas,
as mulheres que têm filhos trabalhando nas ruas monitoram
o horário de saída e chegada das crianças
e o lugar onde elas trabalham, o que significa uma demonstração
de preocupação e carinho.
O perigo real, na visão das
mães, está próximo de suas casas. “A
prostituição, o tráfico de drogas e o roubo
se constituem, para elas, nos referenciais que requerem, de imediato,
maior cuidado e proteção com relação
aos filhos”, declara. Sandra Araújo afirma que essas
mulheres consideram o fato de os filhos estarem vendendo no sinal
uma garantia de segurança. “Não dá
para a criança ser feliz cercada por tanta violência.
Tento, ao máximo, fazer meus filhos terem atividades, fora
da favela, como judô e capoeira. Já que morar aqui
é o jeito, quero que os meninos preencham os pensamentos
com coisas saudáveis”, declara Simone, mãe
de um filho de sete anos e de uma filha de dois.
A antropóloga não considera
que as mães de crianças e adolescentes que vivem
em situação de rua sejam diferentes das outras mães.
“Elas enfrentam dilemas e conflitos e tomam atitudes de
acordo com os desafios que são impostos pelas necessidades
cotidianas”, enfatiza Sandra Araújo, que também
é educadora.
Rita, mãe de duas crianças
que trabalham na rua e que foi ouvida na pesquisa, acredita que
dar carinho significa educar os filhos para serem independentes.
“Um dia meu filho olhou para mim e implorou para eu cuidar
da minha saúde. Ele dizia que não conseguiria sobreviver
sem mim, que ficaria sozinho no mundo. Apesar de gostar muito
dele, encarei-o e disse, de forma firme: Ninguém morre
porque alguém morreu! A pessoa tem de continuar lutando,
sem ficar dependendo de ninguém”, enfatiza.
Sandra Araújo explica que
o abandono é considerado, socialmente, como uma atitude
maléfica, porque fere o “dogma” do amor materno.
A imagem do abandono é vista como ausência de amor
e irresponsabilidade. “Entretanto, abandonar também
pode implicar o salvamento do filho. No Brasil, isto não
é novo. Basta olhar para as mães pobres da época
da colônia que deixavam seus filhos nas rodas na Santa Casa
de Misericórdia. Na atualidade, os orfanatos e abrigos
tomaram o lugar das rodas”, diz. A antropóloga aponta
a falta de atenção das políticas públicas
como principal responsável pela condição
de rua das crianças. “Os programas políticos
não podem só amenizar a pobreza, mas têm de
ser alternativas para que os pobres passem a gerar riqueza. Não
basta somente dar dinheiro ou comida. Isso só faz a situação
de mendicância se perpetuar”, analisa Sandra Araújo.
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