Ano VIII - Nº 103 - Agosto/2002












 

Instinto materno à prova da rua

Pesquisa com mães de filhos que trabalham nas ruas revela que as atenções destinadas aos menores têm princípios de cuidado semelhantes aos identificados nas classes mais favorecidas

Clécio Vidal

Quando vemos crianças vendendo bombons e limpando carros nos sinais de trânsito, normalmente essa situação leva a uma imagem de exploração ou de abandono por parte de suas mães. A antropóloga Sandra Simone de Araújo, integrante da ONG Pé no Chão, procurou mostrar que essa opinião não é necessariamente verdadeira. O resultado de seu trabalho foi a dissertação A Bruxa Má e a Fada Boa, um Estudo sobre Mães de Meninos e Meninas que Vivem em Situação de Rua, desenvolvida na UFPE, para efeito de conclusão do curso de Mestrado em Antropologia. Durante a pesquisa, foram entrevistadas oito mães moradoras de Santo Amaro e outras duas da Boa Vista, ambos bairros do Recife.

“Ao iniciar meus estudos, interessava-me em saber quem eram as mães e como elas se percebiam diante da situação de rua de seus filhos. Ser mãe consiste não somente numa postura individual, mas também numa identidade social”, afirma ela. Sandra Araújo explica que é freqüente a representação das mães de meninos em situação de rua como “bruxas más” – que desprezam e maltratam os filhos – em oposição ao arquétipo (modelo universal) da “deusa mãe”, generosa e acolhedora.

Essa generalização origina-se, segundo ela, de uma visão anômala da sociedade, que tem como modelo dominante de família a divisão do trabalho por faixas etárias e determina que os adultos devem sustentar financeiramente as crianças. O que diverge das crenças estabelecidas socialmente recebe um olhar preconceituoso, no entender da pesquisadora. “Como na família dessas mães isso não ocorre ao pé da letra, as pessoas relacionam, precipitadamente, a condição social das crianças à identidade das mães”, explica.

De acordo com a antropóloga, as mães dos meninos e meninas que vivem em situação de rua visam a proteger, amar e cuidar do filho. A diferença está nas estratégias que elas desenvolvem para cuidar da família. Sandra Araújo afirma que essas mães reproduzem um contexto também vivido por elas quando eram crianças. “Não podemos esquecer que a maior parte dessas mulheres se tornou mãe na adolescência. Para elas, ir buscar trocados na rua é encarado como ir para a escola”, diz a pesquisadora.

A pesquisadora verificou que, nesse caso, assim como as mães das classes sociais mais elevadas, as mulheres que têm filhos trabalhando nas ruas monitoram o horário de saída e chegada das crianças e o lugar onde elas trabalham, o que significa uma demonstração de preocupação e carinho.

O perigo real, na visão das mães, está próximo de suas casas. “A prostituição, o tráfico de drogas e o roubo se constituem, para elas, nos referenciais que requerem, de imediato, maior cuidado e proteção com relação aos filhos”, declara. Sandra Araújo afirma que essas mulheres consideram o fato de os filhos estarem vendendo no sinal uma garantia de segurança. “Não dá para a criança ser feliz cercada por tanta violência. Tento, ao máximo, fazer meus filhos terem atividades, fora da favela, como judô e capoeira. Já que morar aqui é o jeito, quero que os meninos preencham os pensamentos com coisas saudáveis”, declara Simone, mãe de um filho de sete anos e de uma filha de dois.

A antropóloga não considera que as mães de crianças e adolescentes que vivem em situação de rua sejam diferentes das outras mães. “Elas enfrentam dilemas e conflitos e tomam atitudes de acordo com os desafios que são impostos pelas necessidades cotidianas”, enfatiza Sandra Araújo, que também é educadora.

Rita, mãe de duas crianças que trabalham na rua e que foi ouvida na pesquisa, acredita que dar carinho significa educar os filhos para serem independentes. “Um dia meu filho olhou para mim e implorou para eu cuidar da minha saúde. Ele dizia que não conseguiria sobreviver sem mim, que ficaria sozinho no mundo. Apesar de gostar muito dele, encarei-o e disse, de forma firme: Ninguém morre porque alguém morreu! A pessoa tem de continuar lutando, sem ficar dependendo de ninguém”, enfatiza.

Sandra Araújo explica que o abandono é considerado, socialmente, como uma atitude maléfica, porque fere o “dogma” do amor materno. A imagem do abandono é vista como ausência de amor e irresponsabilidade. “Entretanto, abandonar também pode implicar o salvamento do filho. No Brasil, isto não é novo. Basta olhar para as mães pobres da época da colônia que deixavam seus filhos nas rodas na Santa Casa de Misericórdia. Na atualidade, os orfanatos e abrigos tomaram o lugar das rodas”, diz. A antropóloga aponta a falta de atenção das políticas públicas como principal responsável pela condição de rua das crianças. “Os programas políticos não podem só amenizar a pobreza, mas têm de ser alternativas para que os pobres passem a gerar riqueza. Não basta somente dar dinheiro ou comida. Isso só faz a situação de mendicância se perpetuar”, analisa Sandra Araújo.