A
máquina é o veneno e o remédio
Autor do artigo sobre o Homotecnos, o professor Eduardo Duarte
analisa o confronto entre o Homem e a máquina. O criador
e a criatura. Kasparov e Deep Blue
Eduardo Duarte
A tecnocultura, nos dias atuais, tem rendido
episódios curiosos à história do Homo sapiens.
A nossa espécie desenvolveu máquinas que auxiliam
em seu cotidiano e ao mesmo tempo entrou em luta direta pela sobrevivência
com essas mesmas máquinas. Ou seja, o homem inventou-as
para melhorar sua vida e, em seguida, fundou uma disputa literalmente
desumana, pela hegemonia do saber-fazer.
Um dos diversos assaltos desse confronto mitológico
entre criador e criatura, que foi reificado e assistido com muita
expectativa, via-satélite e Internet, por todo o mundo,
foi o duelo do super campeão de xadrez, o russo Gary Kasparov
e o seu antigo adversário eletrônico, o Deep Blue.
Deep Blue é um computador desenvolvido pelos engenheiros
da IBM especialmente para duelar com Kasparov e que já
havia perdido outras partidas para o campeão. Só
que dessa vez a criatura foi reestruturada para usar de “manhas”,
provocando nervosismo no adversário, que deixou passar
lances importantes à partida. O resultado todos sabemos:
Deep Blue é o novo campeão mundial de xadrez. Gary
Kasparov pediu uma revanche que é aguardada com ansiedade
por todos os amantes do xadrez, da inteligência artificial
e os apocalípticos de plantão.
Para muitos, essa derrota do homem para a
máquina foi o ressoar da primeira trombeta: o fim dos tempos
se aproxima. Todos os finais trágicos da humanidade previstos
em filmes e literatura de ficção começavam
a se realizar. O homem foi superado pela máquina, sua própria
invenção. A criatura derrotou o criador.
Mas esse movimento de superação,
que nos saltou aos olhos através da derrota de Kasparov,
já vem tomando corpo há décadas, de forma
lenta e gradativa, quando outros humanos, não tão
famosos, vêm perdendo seus empregos para robôs nas
linhas de montagem das indústrias; para máquinas
supercoletoras nos milharais e para outros artefatos tecnológicos.
Ser engolido por suas próprias invenções
parece uma ironia de um conto de terror, o que faz lembrar imediatamente
o Dr. Frankenstein. Ironia porque a capacidade de desenvolver
dispositivos tecnológicos sempre foi a única vantagem
do Homo sapiens diante das outras espécies; e graças
a tal faculdade esse ramo dos primatas escapou da extinção,
até o momento.
Toda a disputa que se assiste no presente
começou pelas mãos do próprio homem; pela
instrumentalização gradativa de suas atividades
que retirou, aos poucos, o próprio corpo do fazer e potencializou
ferramentas para as tarefas em seu lugar. Ferramentas que, bem
ou mal, vêm gerando níveis de vida mais complexos
e diversificados. Da machadinha aos computadores, passando pelo
arado e os motores à explosão, o saber-fazer tem
permitido ao humano interferir e reinventar formas de natureza.
Os meios (e não só de comunicação)
desenvolvem-se como extensões do homem (McLuhan:1964),
remetendo-lhe a outras dimensões do fazer-saber. Assim,
a tecnologia também vem cumprindo seu papel de empreender
melhorias aos sistemas para os quais é implementada.
Mas a ferramenta não existe apenas
para o fim ao qual foi planejada. Muitos outros fins se desenvolvem
a partir da experimentação de coletivos distintos,
em contextos e momentos históricos distintos. Essa dinâmica
transforma o sentido inicial para o qual a ferramenta foi concebida.
Por esse motivo é que se torna insuficiente considerar
a tecnologia e seus frutos como algo de bom ou de mal, tão
somente. Pois a razão da vivência tem inúmeras
faces.
Num outro debate, mas que ajuda a pensar nosso
tema, Pierre Levy lembra que “em grego antigo o termo pharmakon
(origem, por exemplo, da palavra farmácia) designa tanto
o veneno quanto o remédio”. Isso nos leva a observar
que a experiência direciona o significado do uso, fazendo
com que a discussão seja bem mais ampla do que perguntar
apenas, quais os grupos que se beneficiam da tecnologia e quais
os que ficam de fora do processo.
Considerar os espaços de representação
coletiva e individual, que se interagem na dimensão do
imaginário, permite visões que ensinam e dão
a pensar mais sobre o significado da “derrota” do
campeão mundial de xadrez para uma máquina. Nos
faz perguntar, por exemplo, qual o sentido de humanidade que acreditamos
ter sido derrotado pelo Deep Blue? Se o vocábulo que traz
o veneno traz também o remédio esperamos que o significado
dessa derrota traga também um novo encontro com um sentido
mais amplo e digno de humanidade que não se restrinja apenas
a ser capaz de vencer um jogo de xadrez.
Eduardo Duarte é professor do Departamento
de Comunicação Social da UFPE
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