Ano VIII - Nº 103 - Agosto/2002














 

A máquina é o veneno e o remédio

Autor do artigo sobre o Homotecnos, o professor Eduardo Duarte analisa o confronto entre o Homem e a máquina. O criador e a criatura. Kasparov e Deep Blue

Eduardo Duarte

A tecnocultura, nos dias atuais, tem rendido episódios curiosos à história do Homo sapiens. A nossa espécie desenvolveu máquinas que auxiliam em seu cotidiano e ao mesmo tempo entrou em luta direta pela sobrevivência com essas mesmas máquinas. Ou seja, o homem inventou-as para melhorar sua vida e, em seguida, fundou uma disputa literalmente desumana, pela hegemonia do saber-fazer.

Um dos diversos assaltos desse confronto mitológico entre criador e criatura, que foi reificado e assistido com muita expectativa, via-satélite e Internet, por todo o mundo, foi o duelo do super campeão de xadrez, o russo Gary Kasparov e o seu antigo adversário eletrônico, o Deep Blue. Deep Blue é um computador desenvolvido pelos engenheiros da IBM especialmente para duelar com Kasparov e que já havia perdido outras partidas para o campeão. Só que dessa vez a criatura foi reestruturada para usar de “manhas”, provocando nervosismo no adversário, que deixou passar lances importantes à partida. O resultado todos sabemos: Deep Blue é o novo campeão mundial de xadrez. Gary Kasparov pediu uma revanche que é aguardada com ansiedade por todos os amantes do xadrez, da inteligência artificial e os apocalípticos de plantão.

Para muitos, essa derrota do homem para a máquina foi o ressoar da primeira trombeta: o fim dos tempos se aproxima. Todos os finais trágicos da humanidade previstos em filmes e literatura de ficção começavam a se realizar. O homem foi superado pela máquina, sua própria invenção. A criatura derrotou o criador.

Mas esse movimento de superação, que nos saltou aos olhos através da derrota de Kasparov, já vem tomando corpo há décadas, de forma lenta e gradativa, quando outros humanos, não tão famosos, vêm perdendo seus empregos para robôs nas linhas de montagem das indústrias; para máquinas supercoletoras nos milharais e para outros artefatos tecnológicos.

Ser engolido por suas próprias invenções parece uma ironia de um conto de terror, o que faz lembrar imediatamente o Dr. Frankenstein. Ironia porque a capacidade de desenvolver dispositivos tecnológicos sempre foi a única vantagem do Homo sapiens diante das outras espécies; e graças a tal faculdade esse ramo dos primatas escapou da extinção, até o momento.

Toda a disputa que se assiste no presente começou pelas mãos do próprio homem; pela instrumentalização gradativa de suas atividades que retirou, aos poucos, o próprio corpo do fazer e potencializou ferramentas para as tarefas em seu lugar. Ferramentas que, bem ou mal, vêm gerando níveis de vida mais complexos e diversificados. Da machadinha aos computadores, passando pelo arado e os motores à explosão, o saber-fazer tem permitido ao humano interferir e reinventar formas de natureza. Os meios (e não só de comunicação) desenvolvem-se como extensões do homem (McLuhan:1964), remetendo-lhe a outras dimensões do fazer-saber. Assim, a tecnologia também vem cumprindo seu papel de empreender melhorias aos sistemas para os quais é implementada.

Mas a ferramenta não existe apenas para o fim ao qual foi planejada. Muitos outros fins se desenvolvem a partir da experimentação de coletivos distintos, em contextos e momentos históricos distintos. Essa dinâmica transforma o sentido inicial para o qual a ferramenta foi concebida. Por esse motivo é que se torna insuficiente considerar a tecnologia e seus frutos como algo de bom ou de mal, tão somente. Pois a razão da vivência tem inúmeras faces.

Num outro debate, mas que ajuda a pensar nosso tema, Pierre Levy lembra que “em grego antigo o termo pharmakon (origem, por exemplo, da palavra farmácia) designa tanto o veneno quanto o remédio”. Isso nos leva a observar que a experiência direciona o significado do uso, fazendo com que a discussão seja bem mais ampla do que perguntar apenas, quais os grupos que se beneficiam da tecnologia e quais os que ficam de fora do processo.

Considerar os espaços de representação coletiva e individual, que se interagem na dimensão do imaginário, permite visões que ensinam e dão a pensar mais sobre o significado da “derrota” do campeão mundial de xadrez para uma máquina. Nos faz perguntar, por exemplo, qual o sentido de humanidade que acreditamos ter sido derrotado pelo Deep Blue? Se o vocábulo que traz o veneno traz também o remédio esperamos que o significado dessa derrota traga também um novo encontro com um sentido mais amplo e digno de humanidade que não se restrinja apenas a ser capaz de vencer um jogo de xadrez.

Eduardo Duarte é professor do Departamento de Comunicação Social da UFPE