"A
esquerda está sem norte"
Ao analisar as eleições francesas, o professor da
UFPE e cientista político Marcelo Medeiros faz duros prognósticos
sobre os caminhos da esquerda na Europa
José Carlos Targino
Quais as razões que determinaram
a passagem para o segundo turno, nas eleições francesas,
de um candidato com o perfil de Jean-Marie Le Pen?
A principal razão foi o abstencionismo. Confiando nas previsões
estampadas pelos institutos de pesquisas, o eleitor dava como
certa a chegada de Lionel Jospin na etapa derradeira do escrutínio
e, portanto, considerou seu voto inútil na fase inicial
do processo. Vale assinalar que a porcentagem de votos obtidas
pelo candidato do Front National não difere substancialmente
de suas marcas anteriores. Assim, o que chamou a atenção
da opinião pública hexagonal e mundial foi o fato
de Le Pen ter passado ao segundo turno, mesmo que essa passagem
não tenha sido acompanhada de uma votação
expressiva.
O filósofo Claude Lefort
disse, há pouco, que, em razão de problemas como
a crescente onda de violência que assola o país,
não está descartada a hipótese de a direita
francesa "se organizar" no futuro com a extrema direita.
O sr. concorda com ele?
Em parte. O clima de insegurança que tem emergido nos últimos
anos na França instiga uma reflexão sobre a eficiência
das políticas públicas implementadas no setor da
defesa social. É uma reflexão suprapartidária
que suscita tanto uma reorganização das forças
de direita como das de esquerda. Na medida em que o monolitismo
partidário é inexistente, é possível,
sim, que correntes da direita como as representadas por Charles
Pasqua, Philippe de Viliers ou Charles Mignon tentem, de alguma
maneira, drenar algumas idéias - e com elas os votos -
da extrema direita encarnada por Jean-Marie Le Pen ou Bruno Megret.
Todavia, nesse caso, há uma tendência à diluição
dos propósitos mais radicais expressos pela extrema direita;
eles seriam travestidos numa formulação mais soft,
capaz de ser absorvida por um regime parlamentar democrático.
A vitória da direita moderada,
com Chirac, afastou o perigo Le Pen ou a democracia terá
muitas dificuldades agora em junho, nas eleições
legislativas?
Não. A ducha de água fria nas presidenciais deve,
de certa forma, afastar o fantasma do abstencionismo. Logo, o
xadrez político, então, estará essencialmente
estruturado nas forças clássicas da direita e da
esquerda. Considerando-se que o modo de escrutínio majoritário
distrital aplicado nas legislativas francesas emperra naturalmente
o sucesso de pequenos partidos, entre eles o Front National. Contudo,
há que se prever alguma dificuldade para a direita sair
vitoriosa. Além disso, é provável que haja
agora uma maior mobilização dos eleitores de esquerda
em função do desastre do primeiro turno. Enfim,
parece que no imaginário do povo francês o exercício
da democracia parece estar associado à prática da
coabitação - quando Presidente e Primeiro-Ministro
são de partidos antagônicos.
No seu entender, o que está
acontecendo com a esquerda européia, em geral, e a francesa
em particular?
A mim, me parece que a esquerda, de modo geral, perdeu seu referencial-mor,
a saber: o Estado-Nação. A esquerda européia
e, principalmente, a francesa sempre o defenderam forte e interventor,
não somente como agente regulador, mas igualmente como
vetor produtivo. A partir do momento em que se confirma uma tendência
rumo à democracia de mercado e, conseqüentemente,
o Estado-Nação se vê ameaçado de supressão,
a esquerda encontra-se sem norte e em busca de uma reestruturação
capaz de redefinir seus parâmetros de ação.
Essa busca é incorporada por Tony Blair que tenta, apoiado
nas idéias de Anthony Giddens sobre The Third Way, lançar
a idéia de uma esquerda simpática ao mercado. O
líder do Partido Trabalhista é seguido, nessa senda,
pelo chanceler Gerhard Schröder e também pelo socialista,
e então chefe de governo francês, Lionel Jospin.
Frente a uma afirmação do liberalismo econômico
que sugere o Estado-Região como unidade ótima de
sobrevivência, a esquerda necessita integrar em seu receituário
ideológico novos mecanismos que permitam um melhor relacionamento
entre o público e o privado, entre a regulação
e o laissez-faire.
Houve quem reclamasse contra a
imprensa do país, acusando-a de ter dado muito espaço
a notícias sobre violências de toda ordem, supostamente
praticadas por imigrantes desempregados. Qual foi, de fato, o
papel da imprensa nisso tudo?
Há que se diferenciar os meios impressos dos televisivos.
Não creio que nos jornais tradicionais, sejam eles de esquerda,
centro ou direita, como o Le Monde, Le Figaro ou Libération
o tema da violência tenha sido excessivamente explorado.
Esse não é, provavelmente, o caso da televisão,
intrinsecamente mais tributária da imagem e do sensacionalismo.
Suscitando curiosidade, ojeriza, ódio ou pena as imagens
são digeridas, no mais das vezes, sem a necessária
reflexão. Há, na França, certamente, um sério
problema social com a integração das sucessivas
gerações de imigrantes do Maghreb. Mas ao transformá-los
em únicos vetores da violência, caricaturando-os
e metamorfoseando-os em bode-expiatório, corre-se o risco
de um reducionismo analítico indutor de erro de percepção
da equação social a ser resolvida.
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