Ano VIII - Nº 100 - Maio/2002














 

"A esquerda está sem norte"
Ao analisar as eleições francesas, o professor da UFPE e cientista político Marcelo Medeiros faz duros prognósticos sobre os caminhos da esquerda na Europa

José Carlos Targino

Quais as razões que determinaram a passagem para o segundo turno, nas eleições francesas, de um candidato com o perfil de Jean-Marie Le Pen?
A principal razão foi o abstencionismo. Confiando nas previsões estampadas pelos institutos de pesquisas, o eleitor dava como certa a chegada de Lionel Jospin na etapa derradeira do escrutínio e, portanto, considerou seu voto inútil na fase inicial do processo. Vale assinalar que a porcentagem de votos obtidas pelo candidato do Front National não difere substancialmente de suas marcas anteriores. Assim, o que chamou a atenção da opinião pública hexagonal e mundial foi o fato de Le Pen ter passado ao segundo turno, mesmo que essa passagem não tenha sido acompanhada de uma votação expressiva.

O filósofo Claude Lefort disse, há pouco, que, em razão de problemas como a crescente onda de violência que assola o país, não está descartada a hipótese de a direita francesa "se organizar" no futuro com a extrema direita. O sr. concorda com ele?
Em parte. O clima de insegurança que tem emergido nos últimos anos na França instiga uma reflexão sobre a eficiência das políticas públicas implementadas no setor da defesa social. É uma reflexão suprapartidária que suscita tanto uma reorganização das forças de direita como das de esquerda. Na medida em que o monolitismo partidário é inexistente, é possível, sim, que correntes da direita como as representadas por Charles Pasqua, Philippe de Viliers ou Charles Mignon tentem, de alguma maneira, drenar algumas idéias - e com elas os votos - da extrema direita encarnada por Jean-Marie Le Pen ou Bruno Megret. Todavia, nesse caso, há uma tendência à diluição dos propósitos mais radicais expressos pela extrema direita; eles seriam travestidos numa formulação mais soft, capaz de ser absorvida por um regime parlamentar democrático.

A vitória da direita moderada, com Chirac, afastou o perigo Le Pen ou a democracia terá muitas dificuldades agora em junho, nas eleições legislativas?
Não. A ducha de água fria nas presidenciais deve, de certa forma, afastar o fantasma do abstencionismo. Logo, o xadrez político, então, estará essencialmente estruturado nas forças clássicas da direita e da esquerda. Considerando-se que o modo de escrutínio majoritário distrital aplicado nas legislativas francesas emperra naturalmente o sucesso de pequenos partidos, entre eles o Front National. Contudo, há que se prever alguma dificuldade para a direita sair vitoriosa. Além disso, é provável que haja agora uma maior mobilização dos eleitores de esquerda em função do desastre do primeiro turno. Enfim, parece que no imaginário do povo francês o exercício da democracia parece estar associado à prática da coabitação - quando Presidente e Primeiro-Ministro são de partidos antagônicos.

No seu entender, o que está acontecendo com a esquerda européia, em geral, e a francesa em particular?
A mim, me parece que a esquerda, de modo geral, perdeu seu referencial-mor, a saber: o Estado-Nação. A esquerda européia e, principalmente, a francesa sempre o defenderam forte e interventor, não somente como agente regulador, mas igualmente como vetor produtivo. A partir do momento em que se confirma uma tendência rumo à democracia de mercado e, conseqüentemente, o Estado-Nação se vê ameaçado de supressão, a esquerda encontra-se sem norte e em busca de uma reestruturação capaz de redefinir seus parâmetros de ação. Essa busca é incorporada por Tony Blair que tenta, apoiado nas idéias de Anthony Giddens sobre The Third Way, lançar a idéia de uma esquerda simpática ao mercado. O líder do Partido Trabalhista é seguido, nessa senda, pelo chanceler Gerhard Schröder e também pelo socialista, e então chefe de governo francês, Lionel Jospin. Frente a uma afirmação do liberalismo econômico que sugere o Estado-Região como unidade ótima de sobrevivência, a esquerda necessita integrar em seu receituário ideológico novos mecanismos que permitam um melhor relacionamento entre o público e o privado, entre a regulação e o laissez-faire.

Houve quem reclamasse contra a imprensa do país, acusando-a de ter dado muito espaço a notícias sobre violências de toda ordem, supostamente praticadas por imigrantes desempregados. Qual foi, de fato, o papel da imprensa nisso tudo?
Há que se diferenciar os meios impressos dos televisivos. Não creio que nos jornais tradicionais, sejam eles de esquerda, centro ou direita, como o Le Monde, Le Figaro ou Libération o tema da violência tenha sido excessivamente explorado. Esse não é, provavelmente, o caso da televisão, intrinsecamente mais tributária da imagem e do sensacionalismo. Suscitando curiosidade, ojeriza, ódio ou pena as imagens são digeridas, no mais das vezes, sem a necessária reflexão. Há, na França, certamente, um sério problema social com a integração das sucessivas gerações de imigrantes do Maghreb. Mas ao transformá-los em únicos vetores da violência, caricaturando-os e metamorfoseando-os em bode-expiatório, corre-se o risco de um reducionismo analítico indutor de erro de percepção da equação social a ser resolvida.