Ano VIII - Nº 108 - Janeiro/2003














 

Fome, cidadania e solidariedade

Pós-Graduação em Sociologia promove debate sobre o programa Fome Zero, que culmina com elaboração de manifesto publicado, em parte, nesta edição

No momento em que o Governo Lula discute publicamente a melhor maneira de implantar o Projeto Fome Zero com o objetivo de suprir as necessidades de sobrevivência imediata de grande parcela de brasileiros que se encontra em situação de extrema vulnerabilidade social, é importante que todos os segmentos sociais, no Brasil, se posicionem sobre o assunto.

O sucesso da implantação do Projeto Fome Zero depende, por um lado, da boa vontade de governantes e cidadãos. Por outro lado, está igualmente condicionado pelo modo como venha a ser conduzido o debate. O presente manifesto se legitima no convite que fazemos aos especialistas e ao público em geral para que reflitam sobre as seguintes máximas que vêm sendo colocadas na nossa agenda acadêmica e consideramos que deveriam ser incorporadas como pontos de partida importantes para a implantação do Projeto Fome Zero:

FOME não é apenas falta de alimentação adequada para a sobrevivência física e orgânica dos indivíduos. A fome é sobretudo uma trama simbólica montada em torno da negação da alteridade e do pluralismo; a fome expressa uma atitude etnocêntrica assumida tradicionalmente pelas elites brasileiras com relação às populações mais desfavorecidas.

Acabar com a fome não é só dar comida; extinguir a pobreza não é só gerar emprego; suprimir a fome, ao contrário, é incorporar os milhões de excluídos ao mapa da cidadania. Não basta dispor de alimentos em quantidade suficiente para suprir as necessidades alimentares. O direito à alimentação é mais que necessidade biológica. É direito básico à vida e ponto de partida para se discutir os demais direitos de cada indivíduo ou grupo social em situação de precariedade. Por isso, o dever dos que detêm o poder é assegurar que o enfrentamento da fome seja entendido como um princípio universal da cidadania. Direito para saciar, mas, sobretudo, para libertar.

CIDADANIA não é apenas o livre direito ao voto, reafirmado nos momentos eleitorais. A cidadania é o símbolo de uma série de conquistas de direitos civis, políticos, econômicos, culturais, éticos e estéticos que a humanidade assegurou nos últimos três séculos. Essas conquistas permanecem amplamente desconhecidas no Brasil, beneficiando unicamente os que vêem a cidadania como instrumento de barganha político-eleitoral.

Urge que a cidadania no Brasil seja entendida de modo mais amplo que o usual, que seja apreendida como direito à pluralidade. Não basta que o indivíduo busque apenas a inclusão de si no processo de partilha das riquezas sociais ou que limite a inclusão do terceiro apenas ao momento das eleições. A cidadania apóia-se no trabalho permanente de conscientização dos indivíduos sobre seus direitos e deveres, sobre a relação que se estabelece entre obrigação e liberdade no interior da totalidade social. Garantir a dignidade humana, sentimento que sintetiza o sonho da eqüidade social, constitui uma exigência que se afirma apenas quando a sociedade decide através de seus membros que a doação espontânea mediante prestações e contra-prestações não seja nem um ato unilateral nem vertical, mas um ato coletivo, igualmente compartilhado, consentido e desejado.

Para que a governabilidade se afirme na luta contra a fome é preciso urgentemente que se faça um mapa da fome, buscando não o “faminto coitado”, mas o cidadão que aguarda seu momento de participar ativamente da vida pública. Este é o passo central para a elaboração de políticas consistentes.

POLÍTICA que se reduz à manipulação dos indivíduos em benefício da elite dominante, que se limita a manifestações retóricas e abstratas sobre o interesse popular ou que se identifica a carreirismo profissional é má política. A política que valoriza a tomada de decisões diretamente pelas populações concernidas de modo transparente e participativo é boa política.

Na perspectiva dos signatários do presente manifesto, a política é acima de tudo a capacidade de realização de alianças transparentes, feitas em função do bem coletivo e fundadas nos princípios da justiça social. Para que tais alianças não sejam manipuladas por interesses particulares e corporativistas, é imprescindível que as negociações entre indivíduos, entre grupos e entre instituições politicamente representativas, apóiem-se em reciprocidades mutuamente significativas. A invenção do pacto social a partir desse sistema de interações imediatas constitui o mecanismo de defesa principal, de um lado, contra as tentativas de privatização do espaço público, de outro, a favor da generalização das solidariedades afirmativas.

O PRESENTE COMO PRIORIDADE significa dizer que a invenção do f0uturo não pode depender de fatores tidos como superiores aos interesses sociais como são aqueles do desenvolvimento, do progresso, da globalização, do mercado e da racionalidade técnica. Embora tais fatores não devam ser negligenciados, eles devem, porém, estar submetidos aos processos de alianças políticas e democráticas geradas no interior de cada sociedade nacional por cidadãos concretos que sabem, pelas suas próprias experiências, quais ações lhes são mais convenientes.

O Projeto Fome Zero deve ser visto, assim, não como uma tentativa a mais de zerar a fome orgânica, segundo os mais propostos por técnicos e órgãos desenvolvimentistas, mas como uma proposta de política pública inovadora e original. Este Programa nasce das exigências da situação social brasileira, como síntese de um processo de alianças expresso legitimamente pelos resultados das recentes eleições presidenciais.

Para concluir, os signatários do presente manifesto (estudantes, professores e pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia) entendem que a iniciativa de realização desta jornada de reflexão não se constitui um ato isolado dentro da UFPE, mas reflete um pensamento democratizante que frutifica na nossa Universidade, desde a pessoa do magnífico reitor Mozart Neves Ramos até cada um dos professores, funcionários e alunos que compartilham dessa utopia de um Brasil plenamente democrático.