Fome, cidadania e solidariedade
Pós-Graduação em Sociologia promove debate
sobre o programa Fome Zero, que culmina com elaboração
de manifesto publicado, em parte, nesta edição
No
momento em que o Governo Lula discute publicamente a melhor maneira
de implantar o Projeto Fome Zero com o objetivo de suprir as necessidades
de sobrevivência imediata de grande parcela de brasileiros
que se encontra em situação de extrema vulnerabilidade
social, é importante que todos os segmentos sociais, no
Brasil, se posicionem sobre o assunto.
O
sucesso da implantação do Projeto Fome Zero depende,
por um lado, da boa vontade de governantes e cidadãos.
Por outro lado, está igualmente condicionado pelo modo
como venha a ser conduzido o debate. O presente manifesto se legitima
no convite que fazemos aos especialistas e ao público em
geral para que reflitam sobre as seguintes máximas que
vêm sendo colocadas na nossa agenda acadêmica e consideramos
que deveriam ser incorporadas como pontos de partida importantes
para a implantação do Projeto Fome Zero:
FOME
não é apenas falta de alimentação
adequada para a sobrevivência física e orgânica
dos indivíduos. A fome é sobretudo uma trama simbólica
montada em torno da negação da alteridade e do pluralismo;
a fome expressa uma atitude etnocêntrica assumida tradicionalmente
pelas elites brasileiras com relação às populações
mais desfavorecidas.
Acabar
com a fome não é só dar comida; extinguir
a pobreza não é só gerar emprego; suprimir
a fome, ao contrário, é incorporar os milhões
de excluídos ao mapa da cidadania. Não basta dispor
de alimentos em quantidade suficiente para suprir as necessidades
alimentares. O direito à alimentação é
mais que necessidade biológica. É direito básico
à vida e ponto de partida para se discutir os demais direitos
de cada indivíduo ou grupo social em situação
de precariedade. Por isso, o dever dos que detêm o poder
é assegurar que o enfrentamento da fome seja entendido
como um princípio universal da cidadania. Direito para
saciar, mas, sobretudo, para libertar.
CIDADANIA
não é apenas o livre direito ao voto, reafirmado
nos momentos eleitorais. A cidadania é o símbolo
de uma série de conquistas de direitos civis, políticos,
econômicos, culturais, éticos e estéticos
que a humanidade assegurou nos últimos três séculos.
Essas conquistas permanecem amplamente desconhecidas no Brasil,
beneficiando unicamente os que vêem a cidadania como instrumento
de barganha político-eleitoral.
Urge
que a cidadania no Brasil seja entendida de modo mais amplo que
o usual, que seja apreendida como direito à pluralidade.
Não basta que o indivíduo busque apenas a inclusão
de si no processo de partilha das riquezas sociais ou que limite
a inclusão do terceiro apenas ao momento das eleições.
A cidadania apóia-se no trabalho permanente de conscientização
dos indivíduos sobre seus direitos e deveres, sobre a relação
que se estabelece entre obrigação e liberdade no
interior da totalidade social. Garantir a dignidade humana, sentimento
que sintetiza o sonho da eqüidade social, constitui uma exigência
que se afirma apenas quando a sociedade decide através
de seus membros que a doação espontânea mediante
prestações e contra-prestações não
seja nem um ato unilateral nem vertical, mas um ato coletivo,
igualmente compartilhado, consentido e desejado.
Para
que a governabilidade se afirme na luta contra a fome é
preciso urgentemente que se faça um mapa da fome, buscando
não o “faminto coitado”, mas o cidadão
que aguarda seu momento de participar ativamente da vida pública.
Este é o passo central para a elaboração
de políticas consistentes.
POLÍTICA
que se reduz à manipulação dos indivíduos
em benefício da elite dominante, que se limita a manifestações
retóricas e abstratas sobre o interesse popular ou que
se identifica a carreirismo profissional é má política.
A política que valoriza a tomada de decisões diretamente
pelas populações concernidas de modo transparente
e participativo é boa política.
Na
perspectiva dos signatários do presente manifesto, a política
é acima de tudo a capacidade de realização
de alianças transparentes, feitas em função
do bem coletivo e fundadas nos princípios da justiça
social. Para que tais alianças não sejam manipuladas
por interesses particulares e corporativistas, é imprescindível
que as negociações entre indivíduos, entre
grupos e entre instituições politicamente representativas,
apóiem-se em reciprocidades mutuamente significativas.
A invenção do pacto social a partir desse sistema
de interações imediatas constitui o mecanismo de
defesa principal, de um lado, contra as tentativas de privatização
do espaço público, de outro, a favor da generalização
das solidariedades afirmativas.
O
PRESENTE COMO PRIORIDADE significa dizer que a invenção
do f0uturo não pode depender de fatores tidos como superiores
aos interesses sociais como são aqueles do desenvolvimento,
do progresso, da globalização, do mercado e da racionalidade
técnica. Embora tais fatores não devam ser negligenciados,
eles devem, porém, estar submetidos aos processos de alianças
políticas e democráticas geradas no interior de
cada sociedade nacional por cidadãos concretos que sabem,
pelas suas próprias experiências, quais ações
lhes são mais convenientes.
O Projeto Fome Zero deve ser visto, assim, não como uma
tentativa a mais de zerar a fome orgânica, segundo os mais
propostos por técnicos e órgãos desenvolvimentistas,
mas como uma proposta de política pública inovadora
e original. Este Programa nasce das exigências da situação
social brasileira, como síntese de um processo de alianças
expresso legitimamente pelos resultados das recentes eleições
presidenciais.
Para
concluir, os signatários do presente manifesto (estudantes,
professores e pesquisadores do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia) entendem que a iniciativa de realização
desta jornada de reflexão não se constitui um ato
isolado dentro da UFPE, mas reflete um pensamento democratizante
que frutifica na nossa Universidade, desde a pessoa do magnífico
reitor Mozart Neves Ramos até cada um dos professores,
funcionários e alunos que compartilham dessa utopia de
um Brasil plenamente democrático.
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